quarta-feira, 12 de março de 2014

Você é capaz de confiar que seus filhos irão educar a si mesmos?

O texto que publico a seguir é a tradução da introdução de um livro bem legal sobre os princípios da Sudbury Valley School, gentilmente autorizada pela autora, Mimsy Sadofsky. Espero que provoque boas reflexões!




Você é capaz de confiar que seus filhos irão educar a si mesmos?[1]
Mimsy Sadofsky

Tradução de Luís Gustavo Guadalupe Silveira


          Quando eu pensei sobre qual seria a melhor maneira de explicar o que é a Sudbury Valley School, decidi que eu queria explicá-la como mãe. Eu sou mãe de três filhos que fizeram parte daquilo que começou como um experimento muito empolgante e acabou se mostrando uma ideia solidamente comprovada que tem dado certo há três décadas[2].
          A Sudbury Valley School surgiu da agitação e do descontentamento que marcaram o final dos anos 1960. A maioria de vocês deve ter visto o filme “Hair” – ou talvez não, mas certamente vocês pensam nos anos 60 como um tempo de liberdade, desconforto e insatisfação com o status quo político e, por último mas não menos importante, um tempo de experimentações. Do ponto de vista dos ultrassofisticados anos 90, olhamos para os anos 60 com uma pontinha de desdém. O que certamente não é uma atitude muito correta, mas, de todo modo, a instituição da qual estou falando começou, foi um tipo de produto e de algum jeito sobreviveu àqueles anos impetuosos.
          Uma das ideias que pairava no ar nos anos 60 era a da escola “livre”. E foram fundadas várias escolas cuja ideia central era a liberdade. Naquele tempo, Framingham era um subúrbio calmo de Boston, e ali uma escola que incorporava toda a liberdade razoável era inaugurada silenciosamente por um grupo de pessoas muito quadradas e convencionais. As ideias por trás dessa escola eram muito simples, até elementares. À medida que a escola foi se desenvolvendo ao longo do tempo, os princípios se mantiveram os mesmos, mas a profundidade da compreensão alcançada pelas pessoas envolvidas com a escola sobre esses princípios cresceu imensamente. Eu sou uma sobrevivente, e longe de ser a única, dessas três décadas de trabalho e conhecimento crescentes.
          Muitos de vocês devem ter ouvido falar de planejamento base zero. A Sudbury Valley foi um tipo de escola “planejamento base zero”. Todos as preconcepções sobre o que uma escola precisava fazer eram considerados supérfluas até que se provassem úteis e necessárias. Recentemente, li um artigo na revista American Heritage que falava sobre como essas ideias sobre educação são recentes; noções que pareciam, e ainda parecem para a maioria das pessoas, essenciais para se definir uma escola. Cem anos atrás, somente 3% da população se formavam no ensino médio, e eles definitivamente não estavam tendo uma educação “prática”. Pouco mais de cinquenta anos atrás, esperava-se que somente 50% da população chegassem ao ensino médio e somente em torno de 20% eram considerados aptos para a universidade.
          As pessoas que fundaram a Sudbury Valley sentiam que era totalmente natural para os seres humanos, assim como para todos os outros animais, aprender como sobreviver em seu habitat natural. No caso dos humanos, isso significa que seu cérebro tem que se desenvolver completamente e tem que desenvolver ideias cada vez mais complexas sobre o mundo que os cerca. Eles têm que desenvolver uma visão de mundo e têm que refiná-la ao longo de toda a sua vida. Qual seria possivelmente o melhor jeito de fazer isso? Parece que o melhor jeito é deixar a natureza seguir seu curso; permitir que cada indivíduo floresça completamente e ganhe a confiança habitual das pessoas que sabem o que querem da vida e que descobrem sozinhas como conseguir isso. Parece que essa tarefa de descobrir as coisas e tentar melhorar os próprios conhecimentos, de ir atrás do que você quer, é algo que cada ser humano faz desde a mais tenra idade, e o principal fato que muda quando as pessoas crescem e se tornam adultas é que as coisas que elas desejam e os meios que são capazes de usar para alcançá-las podem se tornar mais complexos e sofisticados. Nós sentimos que uma criança autorizada a desenvolver essas capacidades naturais de tentar compreender o mundo ao máximo seria a criança que melhor se encaixaria numa sociedade que exige criatividade e uma extraordinária capacidade de adaptação. E era totalmente claro pra nós o que era necessário – adaptabilidade e criatividade. Então fizemos o compromisso de educar nossos próprios filhos de um modo que parecia fazer sentido pra nós, não importando o quão “estranho” isso fosse.
          Seres humanos, e isso era claro mesmo no final dos anos 60, em breve iriam viver numa sociedade pós-industrial e tinham que se ajustar a essa realidade. Trabalhadores de linha de montagem eram cada vez menos necessários. Para os fundadores da Sudbury Valley, parecia que os seres humanos que se desenvolviam livremente, sem qualquer obstáculo desnecessário à sua criatividade, e cientes de que a responsabilidade por sua própria vida estava em suas mãos, provavelmente iriam se encaixar mais confortavelmente num mundo que estava começando a mudar numa velocidade vertiginosa.
          Numa época em que a revolta e o questionamento estavam no ar, ainda parecia óbvio para nós que havia componentes muito importantes em nossa sociedade que davam força e coesão a ela. Esses componentes nos deram a força para fazer a revolta, na verdade. Um deles era a democracia. Eu acho que a maioria de nós não aprecia o quanto a democracia está profundamente entranhada em cada um. Para nós é uma questão de princípios que uma grande quantidade de coisas é decidida pela maioria. Uma maioria de votos elege o governador do estado. Uma maioria pode derrotar uma proposta feita por plebiscito, ou transformá-la em lei. Não vemos nada demais em formar clubes ou grupos civis que tomam decisões democraticamente. Em New England, a maioria vive em cidades que são conduzidas segundo o modelo de Assembleias Municipais. Às vezes essas Assembleias podem parecer irritantemente incontroláveis, mas certamente são democráticas! Isso está profundamente arraigado à experiência Americana. Parece fazer muito sentido que uma escola permita que as crianças ganhem experiência real com um governo democrático ao governar democraticamente a instituição que elas estão usando para obter sua própria educação.
          Assim, dois dos aspectos fundamentais de uma escola em que os fundadores da SVS estavam interessados eram liberdade e democracia. E juntos eles apontam para a característica primária que é imprescindível em nossa instituição: confiança; confiança que as pessoas irão descobrir o que precisam, como vão chegar lá, como construir uma comunidade.
          E então, uma terceira ideia se apresenta: responsabilidade. Cidadãos que crescem numa sociedade que oferece liberdade e confiança devem se tornar responsáveis. Como você torna uma pessoa responsável? Todo mundo sabe a resposta: você confia responsabilidade a ela. Isso só pode ser aprendido na prática.
          Essas eram as ideias que se enquadravam razoavelmente bem nos anos 60 e se encaixavam solidamente no todo que iria se tornar a Sudbury Valley. O motivo pelo qual a escola ainda existe é que essas ideias formaram uma unidade coerente e razoável, foram firmemente estabelecidas, batalhadas com firmeza, e fortemente defendidas ao longo dos anos.
          Eu vim aqui nesta manhã como uma sobrevivente desses anos de experiência. Mas uma sobrevivente muito especial: em 1968, quando todas essas ideias praticamente não tinham sido testadas, meu marido e eu fizemos um compromisso que teve amplas consequências para nossa família: nossos filhos foram matriculados e se tornaram alguns dos estudantes originais nessa escola.
          Muitas vezes, nos anos que se seguiram, eu me lembro do que sentimos à época. Estávamos extremamente empolgados, pois os princípios dessa nova escola pareciam tão razoáveis, tão corretos; e estávamos extremamente apavorados, pois era claro que mandar crianças para uma escola assim significava abrir mão de qualquer traço de controle sobre suas vidas escolares. Frequentemente, significou não ter a menor ideia do que se passava em suas vidas escolares. Significava que estávamos depositando um nível de confiança em nossas crianças que era total e completamente diferente de qualquer coisa que as pessoas que conhecíamos (nossos pais, ou nossos amigos ou nossos exemplos de vida) considerariam conceder. Assim, estávamos apavorados. Trinta anos depois, não estamos mais com medo, mas mesmo agora, com toda a nossa experiência, cada pai que envia sua criança para uma escola assim sente os mesmos medos.
          Você certamente ficará inseguro ao falar para uma criança de cinco ou oito anos de idade: “Nós confiamos que você irá descobrir o que você quer e o que você necessita na vida, e também descobrirá como conseguir isso. Vamos permitir que você fique num lugar que reconhece sua habilidade para fazer isso, que respeita você da mesma maneira que um adulto é respeitado, e que também apoia você com uma atmosfera de gentileza e afetividade enquanto você está aprendendo a conduzir sua própria vida.” Mas quando você pensa a respeito, percebe que as pessoas nascem com os cérebros prontos para isso; elas estão adquirindo informação e aprendendo como construir uma visão de mundo desde a mais tenra infância. Quando você pensa em quão difícil é começar do zero e dominar sua língua nativa em poucos anos, fica mais fácil confiar que aquele menino de seis anos, ou de dez anos, irá continuar compreendendo gradualmente o ambiente em que vive. E quando você pensa em como é muito mais difícil pra você, se já tiver passado dos quarenta, programar um videocassete do que é para o seu filho de nove anos de idade, então talvez você possa parar de se preocupar, ou pelo menos pegar mais leve por alguns momentos!
          A Sudbury Valley aceita pessoas de todas as idades, a partir dos quatro anos[3]. Ela oferece um diploma de ensino médio. Há aproximadamente duzentos estudantes. Todos estão fazendo o que querem o tempo todo, e os grupos de estudantes (e equipe) mudam constantemente, assim você pode fazer coisas diferentes em lugares muito diferentes com diversas pessoas num único dia; ou fazer uma coisa sozinho, ou com um grupo do qual você gosta, durante um mês inteiro.
          Os interesses são buscados com gosto, e não há juízo de valor – exceto quando a questão é segurança, legalidade ou padrões da comunidade – sobre as prioridades escolhidas por alguém. Assim, um estudante pode decidir jogar Dungeons and Dragons, ou Magic[4], ou brincar com ursinhos de pelúcia por semanas ou meses e ninguém na escola jamais irá sentir que ele esteja perdendo seu tempo. Infelizmente, muitos estudantes irão encontrar pessoas de fora que não irão entender a intensidade da experiência, a profundidade do conhecimento que se pode tirar dessas atividades. Em nossa escola, não nos preocupamos. Nós ouvimos o vocabulário sofisticado, nós vemos as crianças se tornarem extraordinariamente articuladas, nos maravilhamos com sua criatividade e nos surpreendemos com seu bom senso. De verdade.
          Por exemplo: Hoje há uma criança desse município que, juntamente com sua irmã caçula, é uma estudante da Sudbury Valley. A estrutura democrática da Sudbury Valley inclui um corpo disciplinar, chamado Comitê Judicial, formado por sorteio de membros de diferentes idades, que investiga e atua a partir de reclamações escritas sobre violações de regras. Eu devo ter me reunido nesse comitê com pessoas que tinham tanto bom senso quanto a jovem garota da qual estou falando, e devo ter visto outras que eram muito criativas para bolar punições para os violadores de regras, mas eu nunca vi ninguém que superasse sua habilidade para ser brilhante e criativa ao mesmo tempo.
          Fica claro pra mim que trabalhar de igual pra igual com pessoas mais velhas e mais novas para resolver problemas na comunidade é um dos maiores presentes que podemos oferecer às crianças. E aos adultos. Eu não acho que nenhum de nós entendia o quanto isso era verdade nos idos de 1968; muitos de nós entendemos agora.
          Mas vamos voltar aos pais. É maravilhoso pensar que seu filho pode descobrir como resolver problemas, mas também é perfeitamente normal imaginar se ele irá ou não dominar frações algum dia. É perfeitamente normal ficar preocupado se o sucesso de seu filho como adulto não está condicionado ao fato dele notar a importância de certas coisas que a escola pública nos disse serem vitais. Bem, eles irão notar o que é importante. Eles tanto irão notar quais coisas são realmente importantes quanto irão descobrir como se tornar adultos completamente desenvolvidos. Porque um adulto bem-sucedido é um adulto que se sente livre para aprender coisas novas; se sente no controle de sua vida; e sabe como se divertir. Um adulto bem-sucedido é uma pessoa que tem bom senso, é gentil e cordial. Acho que nós queremos, em primeiro lugar, que nossos filhos sejam boas pessoas, em segundo lugar, que eles tenham as ferramentas necessárias para buscar seus próprios interesses e, por fim, que se sintam parte da comunidade, o que quer que isso signifique pra eles. Pode ser que não expressemos nossos ideais dessa forma quando pensamos a respeito da educação de nossas crianças, mas quando pensamos sobre suas vidas, poucos de nós desejaríamos algo muito diferente.
          Acho que a Sudbury Valley prepara crianças para serem adultos competentes, bem-sucedidos e o único motivo pelo qual uma pessoa sobrevive tendo filhos numa escola dessas é porque ela faz cada pai e cada mãe dar um passo para trás e examinar seu próprio conjunto de valores, e ver que suas crianças não estão fora dos valores de sua família.
          É difícil, enquanto nossas crianças estão formando a si mesmas, e parecendo completamente diferentes umas das outras e diferentes de você, imaginar a extensão de nossa influência sobre elas. Mas certamente, uma criança intelectual provavelmente irá surgir numa família que valoriza muito a leitura e o conteúdo de livros e museus. Um ser humano atencioso e gentil não é um fruto improvável de pais atenciosos e gentis; é mais a confirmação da regra. Seus filhos, não importa como as coisas estejam indo durante seus anos mais rebeldes, muito provavelmente irão se espelhar nos valores que foram exemplificados pela família.
          De fato, exemplos de comportamento em que se espelhar são a razão mais importante de termos adultos numa escola como a nossa. Os estudantes precisam entender como os adultos vivem suas vidas, como os adultos tomam decisões, como os adultos estudam e aprendem. Eles precisam ver estudantes de todas as idades e também adultos envolvidos nessas coisas, ver a vida acontecendo ao redor deles. Eles precisam ver pessoas que amam seu trabalho trabalhando. Eles usam essa informação para modelar a si mesmos; para descobrir como a vida funciona e como eles desejam trabalhar.
          O trecho a seguir é a fala de um ex-estudante sobre esse assunto. Ela foi extraída de entrevistas feitas por Hanna Greenberg e publicadas no livro Kingdom of Childhood[5]:

          Você pega um certo tanto de sua própria personalidade de outras pessoas. Parte do que molda você naquilo que você é é aquilo que você colheu ao seu redor. Você tem essa vasta gama de atividades diferentes acontecendo e diferentes personalidades participando delas e diversas pessoas com as quais você interage. Você pega o que deseja disso tudo, mas a coisa toda não molda ninguém. Todos são moldados por partes que colhem do todo. Se a coisa toda formasse todo mundo, não funcionaria. Não haveria personalidades distintas. Seríamos ciborgues. Não é assim que funciona. Você tem sua própria cabeça e você a constrói sozinho. Você não pega tudo que seus amigos pegam – você não vai sempre ao mesmo tipo de curso, ou pratica os mesmos esportes. Você escolhe o que é interessante pra você.
          Eu nunca tive medo de adultos. Não que eu não respeite as pessoas. Eu respeito crianças de quatro anos. Meu respeito pelas pessoas é igual. Não interessa se você é famoso ou se você é uma criança pequena ou se você é um adulto ou o que quer que seja. Eu não aprendi isso só na escola, mas também na minha criação. Isso faz diferença também. Quanto mais você for exposto a essas coisas, mais você tende a acreditar nelas e realmente incorporá-las em sua vida. Se você vê isso na escola, mas algo completamente diferente é praticado em casa, então você não está tendo tanta base assim. Você vê algo por oito horas e outra coisa durante as outras oito horas e você dorme no resto do tempo, então é uma corda bamba. Você tem que encarar essas coisas com cautela e dizer, “Bem, essas pessoas fazem isso desse jeito, mas minha família faz de outro modo...” e então você tem que escolher qual é o jeito certo de agir. Definitivamente, ajuda muito ter as mesmas filosofias, as mesmas práticas e as mesmas crenças em casa e na escola.
          A maior parte do que eu aprendi, aprendi de outras crianças. Eu não estou dizendo que não aprendi nada nas aulas que fiz. Eu aprendi. Mas o grosso do que você aprende na Sudbury Valley é vida. Você aprende a lidar com pessoas, como fazer coisas e como organizar tudo que você aprendeu. Algumas coisas você irá aprender vendo adultos em ação, ou participando com adultos. Eu fui parte de comitês e coisas do tipo onde podia haver pessoas me mostrando como fazer. Mas a maior parte – 99%, eu acho – do que você aprende, aprende de outras crianças, e isso tem a ver com a vida – como você vive e como as coisas acontecem e o que está rolando. Não é tipo, “Eu aprendi isso dele e dela.” Nós simplesmente aprendemos isso juntos. Algumas coisas você aprende se relacionando diretamente com outras crianças, quando você pode ver o aprendizado acontecendo. Mas na maior parte do tempo é simplesmente porque você se sentou e conversou, ou alguém está dizendo alguma coisa e uma ideia surge, se destaca e se desenvolve.

          Um aspecto interessante de ter crianças em que se confia para tomar as próprias decisões e para administrar suas vidas é que não acontece muita rebeldia. Os anos da adolescência podem não ser uma moleza, mas também não são o fim do mundo. Crianças que não são tratadas como prisioneiras não precisam ficar nervosas por estarem sendo tratadas como prisioneiras. Isso faz uma enorme diferença para a vida familiar! Grande parte dos conflitos familiares normais desaparece quando você trata suas crianças com o mesmo respeito que você espera delas. E uma coisa engraçada acontece quando você educa crianças tratando-as com respeito: elas respeitam tudo: você, outras pessoas, animais, até insetos e peixes!



[1] Introdução do livro Reflections on the Sudbury School Concept, editado por Mimsy Sadofsky e Daniel Greenberg, publicado em 1999. p. 1-10.
[2] NT: a SVS foi fundada em 1968.
[3] Mais especificamente, 21 anos costuma ser a idade máxima dos estudantes (NT).
[4] Um jogo de RPG de mesa e um card game, respectivamente (NT).
[5] GREENBERG, Daniel; SADOFSY, Mimsy (ed). Sudbury Valley School Press: Framingham, 1994.