O texto que publico a seguir é a tradução da introdução de um livro bem legal sobre os princípios da Sudbury Valley School, gentilmente autorizada pela autora, Mimsy Sadofsky. Espero que provoque boas reflexões!
Mimsy Sadofsky
Tradução de
Luís Gustavo Guadalupe Silveira
Quando eu pensei sobre qual seria a
melhor maneira de explicar o que é a Sudbury Valley School, decidi que eu
queria explicá-la como mãe. Eu sou mãe de três filhos que fizeram parte daquilo
que começou como um experimento muito empolgante e acabou se mostrando uma
ideia solidamente comprovada que tem dado certo há três décadas[2].
A Sudbury Valley School surgiu da
agitação e do descontentamento que marcaram o final dos anos 1960. A maioria de
vocês deve ter visto o filme “Hair” – ou talvez não, mas certamente vocês
pensam nos anos 60 como um tempo de liberdade, desconforto e insatisfação com o
status quo político e, por último mas não menos importante, um tempo de
experimentações. Do ponto de vista dos ultrassofisticados anos 90, olhamos para
os anos 60 com uma pontinha de desdém. O que certamente não é uma atitude muito
correta, mas, de todo modo, a instituição da qual estou falando começou, foi um
tipo de produto e de algum jeito sobreviveu àqueles anos impetuosos.
Uma das ideias que pairava no ar nos
anos 60 era a da escola “livre”. E foram fundadas várias escolas cuja ideia
central era a liberdade. Naquele tempo, Framingham era um subúrbio calmo de
Boston, e ali uma escola que incorporava toda a liberdade razoável era
inaugurada silenciosamente por um grupo de pessoas muito quadradas e
convencionais. As ideias por trás dessa escola eram muito simples, até
elementares. À medida que a escola foi se desenvolvendo ao longo do tempo, os
princípios se mantiveram os mesmos, mas a profundidade da compreensão alcançada
pelas pessoas envolvidas com a escola sobre esses princípios cresceu
imensamente. Eu sou uma sobrevivente, e longe de ser a única, dessas três
décadas de trabalho e conhecimento crescentes.
Muitos de vocês devem ter ouvido falar
de planejamento base zero. A Sudbury Valley foi um tipo de escola “planejamento
base zero”. Todos as preconcepções sobre o que uma escola precisava fazer eram
considerados supérfluas até que se provassem úteis e necessárias. Recentemente,
li um artigo na revista American Heritage
que falava sobre como essas ideias sobre educação são recentes; noções que
pareciam, e ainda parecem para a maioria das pessoas, essenciais para se
definir uma escola. Cem anos atrás, somente 3% da população se formavam no
ensino médio, e eles definitivamente não estavam tendo uma educação “prática”. Pouco
mais de cinquenta anos atrás, esperava-se que somente 50% da população
chegassem ao ensino médio e somente em torno de 20% eram considerados aptos
para a universidade.
As pessoas que fundaram a Sudbury
Valley sentiam que era totalmente natural para os seres humanos, assim como
para todos os outros animais, aprender como sobreviver em seu habitat natural. No
caso dos humanos, isso significa que seu cérebro tem que se desenvolver
completamente e tem que desenvolver ideias cada vez mais complexas sobre o
mundo que os cerca. Eles têm que desenvolver uma visão de mundo e têm que
refiná-la ao longo de toda a sua vida. Qual seria possivelmente o melhor jeito
de fazer isso? Parece que o melhor jeito é deixar a natureza seguir seu curso;
permitir que cada indivíduo floresça completamente e ganhe a confiança habitual
das pessoas que sabem o que querem da vida e que descobrem sozinhas como
conseguir isso. Parece que essa tarefa de descobrir as coisas e tentar melhorar
os próprios conhecimentos, de ir atrás do que você quer, é algo que cada ser
humano faz desde a mais tenra idade, e o principal fato que muda quando as
pessoas crescem e se tornam adultas é que as coisas que elas desejam e os meios
que são capazes de usar para alcançá-las podem se tornar mais complexos e
sofisticados. Nós sentimos que uma criança autorizada a desenvolver essas
capacidades naturais de tentar compreender o mundo ao máximo seria a criança
que melhor se encaixaria numa sociedade que exige criatividade e uma
extraordinária capacidade de adaptação. E era totalmente claro pra nós o que era necessário – adaptabilidade e
criatividade. Então fizemos o compromisso de educar nossos próprios filhos de
um modo que parecia fazer sentido pra nós, não importando o quão “estranho”
isso fosse.
Seres humanos, e isso era claro mesmo
no final dos anos 60, em breve iriam viver numa sociedade pós-industrial e
tinham que se ajustar a essa realidade. Trabalhadores de linha de montagem eram
cada vez menos necessários. Para os fundadores da Sudbury Valley, parecia que
os seres humanos que se desenvolviam livremente, sem qualquer obstáculo
desnecessário à sua criatividade, e cientes de que a responsabilidade por sua
própria vida estava em suas mãos, provavelmente iriam se encaixar mais
confortavelmente num mundo que estava começando a mudar numa velocidade
vertiginosa.
Numa época em que a revolta e o
questionamento estavam no ar, ainda parecia óbvio para nós que havia
componentes muito importantes em nossa sociedade que davam força e coesão a
ela. Esses componentes nos deram a força para fazer a revolta, na verdade. Um
deles era a democracia. Eu acho que a maioria de nós não aprecia o quanto a
democracia está profundamente entranhada em cada um. Para nós é uma questão de
princípios que uma grande quantidade de coisas é decidida pela maioria. Uma
maioria de votos elege o governador do estado. Uma maioria pode derrotar uma
proposta feita por plebiscito, ou transformá-la em lei. Não vemos nada demais
em formar clubes ou grupos civis que tomam decisões democraticamente. Em New
England, a maioria vive em cidades que são conduzidas segundo o modelo de
Assembleias Municipais. Às vezes essas Assembleias podem parecer irritantemente
incontroláveis, mas certamente são democráticas! Isso está profundamente
arraigado à experiência Americana. Parece fazer muito sentido que uma escola
permita que as crianças ganhem experiência real com um governo democrático ao
governar democraticamente a instituição que elas estão usando para obter sua
própria educação.
Assim, dois dos aspectos fundamentais
de uma escola em que os fundadores da SVS estavam interessados eram liberdade e
democracia. E juntos eles apontam para a característica primária que é
imprescindível em nossa instituição: confiança; confiança que as pessoas irão
descobrir o que precisam, como vão chegar lá, como construir uma comunidade.
E então, uma terceira ideia se
apresenta: responsabilidade. Cidadãos que crescem numa sociedade que oferece liberdade
e confiança devem se tornar responsáveis. Como você torna uma pessoa
responsável? Todo mundo sabe a resposta: você confia responsabilidade a ela.
Isso só pode ser aprendido na prática.
Essas eram as ideias que se
enquadravam razoavelmente bem nos anos 60 e se encaixavam solidamente no todo
que iria se tornar a Sudbury Valley. O motivo pelo qual a escola ainda existe é
que essas ideias formaram uma unidade coerente e razoável, foram firmemente
estabelecidas, batalhadas com firmeza, e fortemente defendidas ao longo dos
anos.
Eu vim aqui nesta manhã como uma
sobrevivente desses anos de experiência. Mas uma sobrevivente muito especial:
em 1968, quando todas essas ideias praticamente não tinham sido testadas, meu
marido e eu fizemos um compromisso que teve amplas consequências para nossa
família: nossos filhos foram matriculados e se tornaram alguns dos estudantes
originais nessa escola.
Muitas vezes, nos anos que se
seguiram, eu me lembro do que sentimos à época. Estávamos extremamente
empolgados, pois os princípios dessa nova escola pareciam tão razoáveis, tão corretos; e estávamos extremamente
apavorados, pois era claro que mandar crianças para uma escola assim
significava abrir mão de qualquer traço de controle sobre suas vidas escolares.
Frequentemente, significou não ter a menor ideia do que se passava em suas
vidas escolares. Significava que estávamos depositando um nível de confiança em
nossas crianças que era total e completamente diferente de qualquer coisa que
as pessoas que conhecíamos (nossos pais, ou nossos amigos ou nossos exemplos de
vida) considerariam conceder. Assim, estávamos apavorados. Trinta anos depois,
não estamos mais com medo, mas mesmo agora, com toda a nossa experiência, cada
pai que envia sua criança para uma escola assim sente os mesmos medos.
Você certamente ficará inseguro ao
falar para uma criança de cinco ou oito anos de idade: “Nós confiamos que você
irá descobrir o que você quer e o que você necessita na vida, e também
descobrirá como conseguir isso. Vamos permitir que você fique num lugar que
reconhece sua habilidade para fazer isso, que respeita você da mesma maneira
que um adulto é respeitado, e que também apoia você com uma atmosfera de
gentileza e afetividade enquanto você está aprendendo a conduzir sua própria
vida.” Mas quando você pensa a respeito, percebe que as pessoas nascem com os
cérebros prontos para isso; elas estão adquirindo informação e aprendendo como
construir uma visão de mundo desde a mais tenra infância. Quando você pensa em
quão difícil é começar do zero e dominar sua língua nativa em poucos anos, fica
mais fácil confiar que aquele menino de seis anos, ou de dez anos, irá continuar
compreendendo gradualmente o ambiente em que vive. E quando você pensa em como
é muito mais difícil pra você, se já tiver passado dos quarenta, programar um
videocassete do que é para o seu filho de nove anos de idade, então talvez você
possa parar de se preocupar, ou pelo menos pegar mais leve por alguns momentos!
A Sudbury Valley aceita pessoas de
todas as idades, a partir dos quatro anos[3]. Ela oferece um diploma de
ensino médio. Há aproximadamente duzentos estudantes. Todos estão fazendo o que
querem o tempo todo, e os grupos de estudantes (e equipe) mudam constantemente,
assim você pode fazer coisas diferentes em lugares muito diferentes com diversas
pessoas num único dia; ou fazer uma coisa sozinho, ou com um grupo do qual você
gosta, durante um mês inteiro.
Os interesses são buscados com gosto,
e não há juízo de valor – exceto quando a questão é segurança, legalidade ou
padrões da comunidade – sobre as prioridades escolhidas por alguém. Assim, um
estudante pode decidir jogar Dungeons and
Dragons, ou Magic[4], ou brincar com ursinhos
de pelúcia por semanas ou meses e ninguém na escola jamais irá sentir que ele
esteja perdendo seu tempo. Infelizmente, muitos estudantes irão encontrar
pessoas de fora que não irão entender a intensidade da experiência, a
profundidade do conhecimento que se pode tirar dessas atividades. Em nossa
escola, não nos preocupamos. Nós ouvimos o vocabulário sofisticado, nós vemos
as crianças se tornarem extraordinariamente articuladas, nos maravilhamos com
sua criatividade e nos surpreendemos com seu bom senso. De verdade.
Por exemplo: Hoje há uma criança desse
município que, juntamente com sua irmã caçula, é uma estudante da Sudbury
Valley. A estrutura democrática da Sudbury Valley inclui um corpo disciplinar,
chamado Comitê Judicial, formado por sorteio de membros de diferentes idades, que
investiga e atua a partir de reclamações escritas sobre violações de regras. Eu
devo ter me reunido nesse comitê com pessoas que tinham tanto bom senso quanto
a jovem garota da qual estou falando, e devo ter visto outras que eram muito
criativas para bolar punições para os violadores de regras, mas eu nunca vi
ninguém que superasse sua habilidade para ser brilhante e criativa ao mesmo
tempo.
Fica claro pra mim que trabalhar de
igual pra igual com pessoas mais velhas e mais novas para resolver problemas na
comunidade é um dos maiores presentes que podemos oferecer às crianças. E aos
adultos. Eu não acho que nenhum de nós entendia o quanto isso era verdade nos
idos de 1968; muitos de nós entendemos agora.
Mas vamos voltar aos pais. É
maravilhoso pensar que seu filho pode descobrir como resolver problemas, mas
também é perfeitamente normal imaginar se ele irá ou não dominar frações algum
dia. É perfeitamente normal ficar preocupado se o sucesso de seu filho como
adulto não está condicionado ao fato dele notar a importância de certas coisas
que a escola pública nos disse serem vitais. Bem, eles irão notar o que é
importante. Eles tanto irão notar quais coisas são realmente importantes quanto
irão descobrir como se tornar adultos completamente desenvolvidos. Porque um
adulto bem-sucedido é um adulto que se sente livre para aprender coisas novas;
se sente no controle de sua vida; e sabe como se divertir. Um adulto bem-sucedido
é uma pessoa que tem bom senso, é gentil e cordial. Acho que nós queremos, em
primeiro lugar, que nossos filhos sejam boas pessoas, em segundo lugar, que
eles tenham as ferramentas necessárias para buscar seus próprios interesses e,
por fim, que se sintam parte da comunidade, o que quer que isso signifique pra
eles. Pode ser que não expressemos nossos ideais dessa forma quando pensamos a
respeito da educação de nossas
crianças, mas quando pensamos sobre suas vidas,
poucos de nós desejaríamos algo muito diferente.
Acho que a Sudbury Valley prepara
crianças para serem adultos competentes, bem-sucedidos e o único motivo pelo
qual uma pessoa sobrevive tendo filhos numa escola dessas é porque ela faz cada
pai e cada mãe dar um passo para trás e examinar seu próprio conjunto de
valores, e ver que suas crianças não estão fora dos valores de sua família.
É difícil, enquanto nossas crianças
estão formando a si mesmas, e parecendo completamente diferentes umas das
outras e diferentes de você, imaginar a extensão de nossa influência sobre
elas. Mas certamente, uma criança intelectual provavelmente irá surgir numa
família que valoriza muito a leitura e o conteúdo de livros e museus. Um ser
humano atencioso e gentil não é um fruto improvável de pais atenciosos e
gentis; é mais a confirmação da regra. Seus filhos, não importa como as coisas
estejam indo durante seus anos mais rebeldes, muito provavelmente irão se
espelhar nos valores que foram exemplificados pela família.
De fato, exemplos de comportamento em
que se espelhar são a razão mais importante de termos adultos numa escola como
a nossa. Os estudantes precisam entender como os adultos vivem suas vidas, como
os adultos tomam decisões, como os adultos estudam e aprendem. Eles precisam
ver estudantes de todas as idades e também adultos envolvidos nessas coisas, ver
a vida acontecendo ao redor deles. Eles precisam ver pessoas que amam seu
trabalho trabalhando. Eles usam essa informação para modelar a si mesmos; para
descobrir como a vida funciona e como eles desejam trabalhar.
O trecho a seguir é a fala de um
ex-estudante sobre esse assunto. Ela foi extraída de entrevistas feitas por
Hanna Greenberg e publicadas no livro Kingdom
of Childhood[5]:
Você
pega um certo tanto de sua própria personalidade de outras pessoas. Parte do
que molda você naquilo que você é é aquilo que você colheu ao seu redor. Você
tem essa vasta gama de atividades diferentes acontecendo e diferentes
personalidades participando delas e diversas pessoas com as quais você
interage. Você pega o que deseja disso tudo, mas a coisa toda não molda
ninguém. Todos são moldados por partes que colhem do todo. Se a coisa toda
formasse todo mundo, não funcionaria. Não haveria personalidades distintas.
Seríamos ciborgues. Não é assim que funciona. Você tem sua própria cabeça e
você a constrói sozinho. Você não pega tudo que seus amigos pegam – você não
vai sempre ao mesmo tipo de curso, ou pratica os mesmos esportes. Você escolhe
o que é interessante pra você.
Eu
nunca tive medo de adultos. Não que eu não respeite as pessoas. Eu respeito
crianças de quatro anos. Meu respeito pelas pessoas é igual. Não interessa se
você é famoso ou se você é uma criança pequena ou se você é um adulto ou o que
quer que seja. Eu não aprendi isso só na escola, mas também na minha criação.
Isso faz diferença também. Quanto mais você for exposto a essas coisas, mais
você tende a acreditar nelas e realmente incorporá-las em sua vida. Se você vê
isso na escola, mas algo completamente diferente é praticado em casa, então
você não está tendo tanta base assim. Você vê algo por oito horas e outra coisa
durante as outras oito horas e você dorme no resto do tempo, então é uma corda
bamba. Você tem que encarar essas coisas com cautela e dizer, “Bem, essas
pessoas fazem isso desse jeito, mas minha família faz de outro modo...” e então
você tem que escolher qual é o jeito certo de agir. Definitivamente, ajuda
muito ter as mesmas filosofias, as mesmas práticas e as mesmas crenças em casa
e na escola.
A
maior parte do que eu aprendi, aprendi de outras crianças. Eu não estou dizendo
que não aprendi nada nas aulas que fiz. Eu aprendi. Mas o grosso do que você
aprende na Sudbury Valley é vida. Você aprende a lidar com pessoas, como fazer
coisas e como organizar tudo que você aprendeu. Algumas coisas você irá
aprender vendo adultos em ação, ou participando com adultos. Eu fui parte de
comitês e coisas do tipo onde podia haver pessoas me mostrando como fazer. Mas
a maior parte – 99%, eu acho – do que você aprende, aprende de outras crianças,
e isso tem a ver com a vida – como você vive e como as coisas acontecem e o que
está rolando. Não é tipo, “Eu aprendi isso dele e dela.” Nós simplesmente
aprendemos isso juntos. Algumas coisas você aprende se relacionando diretamente
com outras crianças, quando você pode ver o aprendizado acontecendo. Mas na
maior parte do tempo é simplesmente porque você se sentou e conversou, ou
alguém está dizendo alguma coisa e uma ideia surge, se destaca e se desenvolve.
Um aspecto interessante de ter
crianças em que se confia para tomar as próprias decisões e para administrar
suas vidas é que não acontece muita rebeldia. Os anos da adolescência podem não
ser uma moleza, mas também não são o fim do mundo. Crianças que não são
tratadas como prisioneiras não precisam ficar nervosas por estarem sendo
tratadas como prisioneiras. Isso faz uma enorme diferença para a vida familiar!
Grande parte dos conflitos familiares normais desaparece quando você trata suas
crianças com o mesmo respeito que você espera delas. E uma coisa engraçada
acontece quando você educa crianças tratando-as com respeito: elas respeitam
tudo: você, outras pessoas, animais, até insetos e peixes!
[1]
Introdução do livro Reflections on the
Sudbury School Concept, editado por Mimsy Sadofsky e Daniel Greenberg,
publicado em 1999. p. 1-10.
[2]
NT: a SVS foi fundada em 1968.
[3]
Mais especificamente, 21 anos costuma ser a idade máxima dos estudantes (NT).
[4]
Um jogo de RPG de mesa e um card game, respectivamente (NT).