segunda-feira, 21 de novembro de 2016

E se o primeiro princípio da educação fosse o mesmo da medicina?

E se o primeiro princípio da educação fosse o mesmo da medicina?
E se as escolas mantidas pelo Estado tivessem que provar que fazem mais bem do que mal?


Tradução de Luís Gustavo Guadalupe Silveira

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 Fonte: Imagem de domínio público do Creative Commons

Primum non nocere: em primeiro lugar, não causar dano. Os estudantes da maioria das faculdades de medicina, para se tornarem médicos, devem fazer um juramento, parcialmente inspirado no antigo juramento de Hipócrates, no qual declaram estar conscientes de que o primeiro princípio da prática médica é “não causar dano.” Claro, muitos tratamentos médico envolvem necessariamente algum dano; assim, o que esse princípio quer dizer na prática é que todo o dano potencial a um paciente deve ser comparado ao benefício estimado, e deve haver uma boa evidência de que o benefício será maior que o dano.

E se nosso sistema de escolarização compulsória tivesse que fornecer evidências, para cada criança, de que o benefício da escolarização é maior que o dano que ela causa? Aqui está a pequena Suzy, com 5 anos de idade. O Estado diz que ela precisa entrar no jardim de infância; nem ela nem seus pais podem fazer nada a respeito (a menos que seus pais tenham condição de educá-la em casa ou de bancar outras formas de satisfazer a exigência de educação compulsória do governo). E se, antes de matricular a pequena Suzy, o Estado tivesse que provar que a instituição na qual ela será forçada a entrar irá provavelmente trazer mais benefícios que malefícios?

Se o Estado tivesse que fazer isso – se tivesse que respeitar o juramento de “não causar dano” – a escolarização como conhecemos iria entrar em colapso. De repente, teria lugar a tão aguardada revolução educacional. Na realidade, mesmo se a exigência fosse somente provar que a escolarização beneficia a criança média, ou a maioria das crianças, mais do que a prejudica, o sistema iria ruir.

A escolarização compulsória é uma imensa invasão nas vidas das crianças e suas famílias, e seus danos estão bem documentados.

Às vezes, ouço dos defensores da escolarização forçada o que eu chamo de a justificativa “do remédio amargo.” A escolarização, eles dizem, pode não ser agradável, mas é necessária para o bem-estar das pessoas a longo prazo. Eles ignoram o fato de a maioria dos remédios ser tomada em questão de segundos, enquanto a escolarização compulsória leva 11 anos (ou 13 em alguns Estados). Eles ignoram que pessoas razoáveis podem escolher tomar um remédio ou não, ou administrar ou não medicamentos aos seus filhos pequenos, baseadas em sua própria análise das evidências sobre os possíveis benefícios do tratamento. Eles ignoram o fato de não haver nenhuma evidência de que a escolarização forçada obtenha melhores resultados do que outras formas de educar que têm um gosto melhor e placebos mais baratos. O placebo do qual estou falando é o unschooling, ou escolas livres e democráticas, nas quais as crianças são responsáveis por suas próprias vidas e por sua educação, e contam com a ajuda, e não a coerção, de adultos dedicados, quando assim desejam.

Se a escolarização fosse um medicamento, ela nunca seria aprovada pela FDA. Não há nenhuma evidência de que ela oferece mais benefícios do que os placebos que eu mencionei acima, e há muita evidência de que ela causa sério dano. Aqui estão algumas das evidências que já foram documentadas:

Um estudo em grande escala feito com estudantes de vários distritos escolares, usando um método experimental por amostragem, revelou que estudantes eram menos felizes na escola do que em qualquer outro lugar em que costumavam estar.[1]

Professores frequentemente cometem abusos verbais. Em outra pesquisa, por exemplo, 64% dos estudantes do ensino médio relataram sofrer de sintomas de estresse causados por abusos verbais de professores.[2] Outro estudo revelou que quase 30% dos meninos sofreram abuso verbal de seus professores no jardim de infância, e que o abuso aumentou nos anos seguintes.[3] Pesquisas em adultos indicaram que entre 50% e 60% dos investigados se lembram de experiências escolares que, em sua opinião, foram psicologicamente traumáticas.[4]

Em um estudo em que 150 estudantes universitários foram convidados a descrever as duas experiências mais negativas de suas vidas – experiências que afetaram negativamente o seu desenvolvimento – de longe os relatos mais comuns (28% do total) foram interações traumáticas com professores.[5] Em um estudo em que adultos foram entrevistados para descobrir sobre as melhores experiências positivas de aprendizado em suas vidas escolares, poucos foram capazes de relatar tais experiências, mas muitos se lembraram de experiências negativas, que atrapalharam mais que ajudaram seu desenvolvimento.[6]

Os níveis de cortisol no cabelo de crianças pequenas eram significativamente mais elevados nas amostras obtidas dois meses depois do início das aulas do que nas amostras extraídas dois meses antes de começar a escola.[7] O nível de cortisol indica estresse crônico, o tipo de estresse que pode prejudicar seriamente o crescimento e a saúde.

Uma pesquisa nacional de larga escala, conduzida pela American Psychological Association, (publicado aqui) revelou que os adolescentes dos EUA se sentem mais estressados do que os adultos e que a escola é de longe a principal causa de seu estresse (apontada por 83% dos entrevistados). No mesmo estudo, 27% dos adolescentes relataram experimentar “estresse extremo” durante o período escolar, contra 13% que relataram estresse durante as férias.

No âmbito da saúde mental, a taxa de visitas emergenciais que levaram a pelo menos uma noite de internação (o tipo de visita causada por surtos graves ou tentativas de suicídio) em um centro de saúde infantil se mostrou mais de duas vezes maior durante os meses letivos em comparação aos meses de férias (aqui).

A isso, acrescente a imensa quantidade de tempo das crianças e dos adolescentes que é desperdiçada dentro do sistema escolar. Se você não acredita, peça permissão ao diretor de uma escola para ser a “sombra” de um estudante por um dia – quer dizer, para passar um dia inteiro na escola fazendo tudo que se exige de um estudante. Todos os adultos que fizeram isso – incluindo vários professores – ficaram chocados com o tédio e as horas perdidas, durante ais quais não eram livres para se dedicar a nada de sua escolha. Nenhum deles quis repetir a dose por mais um dia. Acredite, crianças e adolescentes não são mais tolerantes ao tédio do que adultos; eles simplesmente não têm escolha.

Educação não-invasiva como alternativa à escolarização forçada

Sempre que possível, médicos esclarecidos e conscienciosos procuram por métodos não-invasivos ou minimamente invasivos para resolver problemas médicos em lugar de métodos altamente invasivos, tais como cirurgias ou medicamentos tóxicos, que prejudicam a integridade do corpo e podem causar dor, invalidez ou mesmo morte. A escolarização forçada é uma prática educacional extraordinariamente invasiva. A alternativa não-invasiva é a educação autodirigida, como no unschooling ou em escolas democráticas e livres. Pesquisas realizadas até o momento sugerem que esses modos de educação são pelo menos tão efetivos quanto a escolarização forçada na preparação dos jovens para a vida adulta e que perturbam bem menos a vida cotidiana das crianças e suas famílias [8].

Mas o establishment educacional não quer saber dessas evidências. Aqueles que lucram com a instrução forçada e invasiva são como cirurgiões que lucram com cirurgias e não querem saber se há maneiras mais baratas e menos invasivas de resolver o problema médico específico que eles estão tratando. Em duas ocasiões, eu concorri, junto a outros colegas, por bolsas de pesquisa em grandes fundações que permitiriam fazer um estudo bem elaborado e sistemático sobre os efeitos de longo e curto prazos da escolarização padrão (tanto pública quanto privada) em comparação à educação autodirigida. Em ambos os casos, o projeto foi rejeitado sem nenhuma explicação e sem estímulo para novas tentativas. Eu não gosto de soar arrogante, mas sou pesquisador há um bom tempo e já revisei muitos pedidos de bolsa. Eu sei que o estudo proposto por nós, em ambos os casos, destacava-se pelo planejamento e por apresentar questões que são muito mais importantes para o bem-estar e o futuro das crianças e de nosso país do que a maioria (senão a totalidade) das outras pesquisas financiadas por aquelas fundações. Para mim, isso representa uma inegável evidência de que o establishment educacional simplesmente não quer que ninguém faça a grande pergunta: o nosso sistema educacional atual, compulsório e hierarquizado, é mesmo mais eficiente no desenvolvimento de adultos competentes, produtivos, bem empregados e felizes do que uma educação autodirigida e não-invasiva?

Imagine o que aconteceria se uma dessas fundações realmente financiasse um estudo bem planejado e os resultados mostrassem, de uma maneira difícil de contradizer, que o procedimento não-invasivo funciona tão bem ou mesmo melhor que o invasivo. Como alguém poderia então justificar o gigante educacional que sustenta tantas carreiras e enriquece tantas empresas? Já não haveria mais a necessidade de departamentos de educação nas universidades. A necessidade de professores seria grandemente reduzida – até um pequeno número que seria procurado por aprendizes autodirigidos em razão de suas habilidades e conhecimentos, não em função de suas “credenciais de professor.” Haveria pouca necessidade de livros didáticos; e, sem seus consumidores forçados, os preços desses livros iria cair e sua qualidade, aumentar.

A revolução educacional virá, mas não de dentro do establishment educacional. Virá pois cada vez mais pessoas estão usando todos os meios legais disponíveis para tirar seus filhos desse sistema invasivo. Enquanto isso acontece, com a passagem do tempo, um número cada vez maior de pessoas irá conhecer gente que cresceu fora da escolarização forçada e verá que a educação não-invasiva funciona. Em algum momento, as comportas irão se abrir, e o establishment educacional ser tornará irrelevante, e eventualmente irá se extinguir. Espero que isso aconteça enquanto eu estiver vivo. Por favor, ajude a fazer acontecer.

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[Recado de Peter Gray]
Este blog é, entre outras coisas, um fórum de discussão. Por favor, compartilhe suas ideias e experiências que sejam relevantes para o argumento do “não fazer o mal” aplicado à educação. Como sempre, eu prefiro que vocês postem suas ideias e perguntas aqui, na seção de comentários, do que enviá-los para mim via e-mail. Postando-os aqui, vocês os compartilham com outros leitores, não só comigo. Eu tento ler todos os comentários e responder todas as perguntas sérias quando penso que tenho algo que vale a pena dizer. Naturalmente, se você tiver algo para dizer que se aplica somente a você e a mim, envie então um e-mail, mas não garanto a resposta, pois frequentemente recebo mais e-mails do que consigo responder. Além disso, tenha em mente que eu não sou um coach familiar, e geralmente evito dar conselhos pessoais.

Veja também meu livro Free to Learn, alternativestoschool.com; self-directed.org (para saber mais sobre ASDE), e junte-se a mim no Facebook.

Referências

[1] Csíkszentmihályi, M., & Hunter, J. (2003). Happiness in everyday life: The uses of experience sampling. Journal of Happiness Studies, 4, 185–199.

[2] Irwin A. Hyman & Donna C. Perone (1998). The Other Side of Student Violence: Educator Policies and Practices That May Contribute to Student Misbehavior. Journal of School Psychology, 36, 7-27.

[3] Brengden, M., Wanner, B., & Vitaro, F. (2006). Verbal abuse by the teacher and child adjustment from kindergarten through grade 6. Pediatrics, 117, 1585-1598.

[4] A. G. McEachern, O. Aluede & M. C. Kenny (2008). Emotional abuse in the classroom: Implications and interventions for counselors. Journal of Counseling and Development 86, 3-10.

[5] J. M. Branan (1972). Negative human interactions. Journal of Counseling Psychology, 19, 81-82.

[6] K. Olson. Wounded by School. Teachers’ College Press, 2009.

[7] Children’s hair cortisol as a biomarker of stress at school entry Groeneveld et al (2013). Stress: The International Journal on the Biology of Stress, 16, 711-715.

[8] For a review of the evidence and references to the studies see: P. Gray (2016). Mother nature’s pedagogy: How children educate themselves, pp 49-62 in H.E. Lees & N. Noddings (Eds.), The Palgrave international handbook of alternative education.