E
se o primeiro princípio da educação fosse o mesmo da medicina?
E
se as escolas mantidas pelo Estado tivessem que provar que fazem mais
bem do que mal?
Peter
Gray, postado em 10 de setembro de 2016, disponível em:
https://www.psychologytoday.com/blog/freedom-learn/201609/what-if-medicine-s-first-principle-were-also-education-s
Tradução
de Luís Gustavo Guadalupe Silveira
Fonte:
Imagem de domínio público do Creative Commons
Primum
non nocere: em primeiro lugar, não causar dano. Os estudantes da
maioria das faculdades de medicina, para se tornarem médicos, devem
fazer um juramento, parcialmente inspirado no antigo juramento de
Hipócrates, no qual declaram estar conscientes de que o primeiro
princípio da prática médica é “não causar dano.” Claro,
muitos tratamentos médico envolvem necessariamente algum dano;
assim, o que esse princípio quer dizer na prática é que todo o
dano potencial a um paciente deve ser comparado ao benefício
estimado, e deve haver uma boa evidência de que o benefício será
maior que o dano.
E
se nosso sistema de escolarização compulsória tivesse que fornecer
evidências, para cada criança, de que o benefício da escolarização
é maior que o dano que ela causa? Aqui está a pequena Suzy, com 5
anos de idade. O Estado diz que ela precisa entrar no jardim de
infância; nem ela nem seus pais podem fazer nada a respeito (a menos
que seus pais tenham condição de educá-la em casa ou de bancar
outras formas de satisfazer a exigência de educação compulsória
do governo). E se, antes de matricular a pequena Suzy, o Estado
tivesse que provar que a instituição na qual ela será forçada a
entrar irá provavelmente trazer mais benefícios que malefícios?
Se
o Estado tivesse que fazer isso – se tivesse que respeitar o
juramento de “não causar dano” – a escolarização como
conhecemos iria entrar em colapso. De repente, teria lugar a tão
aguardada revolução educacional. Na realidade, mesmo se a exigência
fosse somente provar que a escolarização beneficia a criança
média, ou a maioria das crianças, mais do que a prejudica, o
sistema iria ruir.
A
escolarização compulsória é uma imensa invasão nas vidas das
crianças e suas famílias, e seus danos estão bem documentados.
Às
vezes, ouço dos defensores da escolarização forçada o que eu
chamo de a justificativa “do remédio amargo.” A escolarização,
eles dizem, pode não ser agradável, mas é necessária para o
bem-estar das pessoas a longo prazo. Eles ignoram o fato de a maioria
dos remédios ser tomada em questão de segundos, enquanto a
escolarização compulsória leva 11 anos (ou 13 em alguns Estados).
Eles ignoram que pessoas razoáveis podem escolher tomar um remédio
ou não, ou administrar ou não medicamentos aos seus filhos
pequenos, baseadas em sua própria análise das evidências sobre os
possíveis benefícios do tratamento. Eles ignoram o fato de não
haver nenhuma evidência de que a escolarização forçada obtenha
melhores resultados do que outras formas de educar que têm um gosto
melhor e placebos mais baratos. O placebo do qual estou falando é o
unschooling, ou escolas livres e democráticas, nas quais as
crianças são responsáveis por suas próprias vidas e por sua
educação, e contam com a ajuda, e não a coerção, de adultos
dedicados, quando assim desejam.
Se
a escolarização fosse um medicamento, ela nunca seria aprovada pela
FDA. Não há nenhuma evidência de que ela oferece mais benefícios
do que os placebos que eu mencionei acima, e há muita evidência de
que ela causa sério dano. Aqui estão algumas das evidências que já
foram documentadas:
•
Um estudo em grande escala feito com
estudantes de vários distritos escolares, usando um método
experimental por amostragem, revelou que estudantes eram menos
felizes na escola do que em qualquer outro lugar em que costumavam
estar.[1]
•
Professores frequentemente cometem
abusos verbais. Em outra pesquisa, por exemplo, 64% dos estudantes do
ensino médio relataram sofrer de sintomas de estresse causados por
abusos verbais de professores.[2] Outro estudo revelou que quase 30%
dos meninos sofreram abuso verbal de seus professores no jardim de
infância, e que o abuso aumentou nos anos seguintes.[3] Pesquisas em
adultos indicaram que entre 50% e 60% dos investigados se lembram de
experiências escolares que, em sua opinião, foram psicologicamente
traumáticas.[4]
•
Em um estudo em que 150 estudantes
universitários foram convidados a descrever as duas experiências
mais negativas de suas vidas – experiências que afetaram
negativamente o seu desenvolvimento – de longe os relatos mais
comuns (28% do total) foram interações traumáticas com
professores.[5] Em um estudo em que adultos foram entrevistados para
descobrir sobre as melhores experiências positivas de aprendizado em
suas vidas escolares, poucos foram capazes de relatar tais
experiências, mas muitos se lembraram de experiências negativas,
que atrapalharam mais que ajudaram seu desenvolvimento.[6]
•
Os níveis de cortisol no cabelo de
crianças pequenas eram significativamente mais elevados nas amostras
obtidas dois meses depois do início das aulas do que nas amostras
extraídas dois meses antes de começar a escola.[7] O nível de
cortisol indica estresse crônico, o tipo de estresse que pode
prejudicar seriamente o crescimento e a saúde.
•
Uma pesquisa nacional de larga escala,
conduzida pela American Psychological Association, (publicado
aqui) revelou que os adolescentes dos EUA se sentem mais
estressados do que os adultos e que a escola é de longe a principal
causa de seu estresse (apontada por 83% dos entrevistados). No mesmo
estudo, 27% dos adolescentes relataram experimentar “estresse
extremo” durante o período escolar, contra 13% que relataram
estresse durante as férias.
•
No âmbito da saúde mental, a taxa de
visitas emergenciais que levaram a pelo menos uma noite de internação
(o tipo de visita causada por surtos graves ou tentativas de
suicídio) em um centro de saúde infantil se mostrou mais de duas
vezes maior durante os meses letivos em comparação aos meses de
férias (aqui).
A
isso, acrescente a imensa quantidade de tempo das crianças e dos
adolescentes que é desperdiçada dentro do sistema escolar. Se você
não acredita, peça permissão ao diretor de uma escola para ser a
“sombra” de um estudante por um dia – quer dizer, para passar
um dia inteiro na escola fazendo tudo que se exige de um estudante.
Todos os adultos que fizeram isso – incluindo vários professores –
ficaram chocados com o tédio e as horas perdidas, durante ais quais
não eram livres para se dedicar a nada de sua escolha. Nenhum deles
quis repetir a dose por mais um dia. Acredite, crianças e
adolescentes não são mais tolerantes ao tédio do que adultos; eles
simplesmente não têm escolha.
Educação
não-invasiva como alternativa à escolarização forçada
Sempre
que possível, médicos esclarecidos e conscienciosos procuram por
métodos não-invasivos ou minimamente invasivos para resolver
problemas médicos em lugar de métodos altamente invasivos, tais
como cirurgias ou medicamentos tóxicos, que prejudicam a integridade
do corpo e podem causar dor, invalidez ou mesmo morte. A
escolarização forçada é uma prática educacional
extraordinariamente invasiva. A alternativa não-invasiva é a
educação autodirigida, como no unschooling ou em escolas
democráticas e livres. Pesquisas realizadas até o momento sugerem
que esses modos de educação são pelo menos tão efetivos quanto a
escolarização forçada na preparação dos jovens para a vida
adulta e que perturbam bem menos a vida cotidiana das crianças e
suas famílias [8].
Mas
o establishment educacional não quer saber dessas evidências.
Aqueles que lucram com a instrução forçada e invasiva são como
cirurgiões que lucram com cirurgias e não querem saber se há
maneiras mais baratas e menos invasivas de resolver o problema médico
específico que eles estão tratando. Em duas ocasiões, eu concorri,
junto a outros colegas, por bolsas de pesquisa em grandes fundações
que permitiriam fazer um estudo bem elaborado e sistemático sobre os
efeitos de longo e curto prazos da escolarização padrão (tanto
pública quanto privada) em comparação à educação autodirigida.
Em ambos os casos, o projeto foi rejeitado sem nenhuma explicação e
sem estímulo para novas tentativas. Eu não gosto de soar arrogante,
mas sou pesquisador há um bom tempo e já revisei muitos pedidos de
bolsa. Eu sei que o estudo proposto por nós, em ambos os casos,
destacava-se pelo planejamento e por apresentar questões que são
muito mais importantes para o bem-estar e o futuro das crianças e de
nosso país do que a maioria (senão a totalidade) das outras
pesquisas financiadas por aquelas fundações. Para mim, isso
representa uma inegável evidência de que o establishment
educacional simplesmente não quer que ninguém faça a grande
pergunta: o nosso sistema educacional atual, compulsório e
hierarquizado, é mesmo mais eficiente no desenvolvimento de adultos
competentes, produtivos, bem empregados e felizes do que uma educação
autodirigida e não-invasiva?
Imagine
o que aconteceria se uma dessas fundações realmente financiasse um
estudo bem planejado e os resultados mostrassem, de uma maneira
difícil de contradizer, que o procedimento não-invasivo funciona
tão bem ou mesmo melhor que o invasivo. Como alguém poderia então
justificar o gigante educacional que sustenta tantas carreiras e
enriquece tantas empresas? Já não haveria mais a necessidade de
departamentos de educação nas universidades. A necessidade de
professores seria grandemente reduzida – até um pequeno número
que seria procurado por aprendizes autodirigidos em razão de suas
habilidades e conhecimentos, não em função de suas “credenciais
de professor.” Haveria pouca necessidade de livros didáticos; e,
sem seus consumidores forçados, os preços desses livros iria cair e
sua qualidade, aumentar.
A
revolução educacional virá, mas não de dentro do establishment
educacional. Virá pois cada vez mais pessoas estão usando todos os
meios legais disponíveis para tirar seus filhos desse sistema
invasivo. Enquanto isso acontece, com a passagem do tempo, um número
cada vez maior de pessoas irá conhecer gente que cresceu fora da
escolarização forçada e verá que a educação não-invasiva
funciona. Em algum momento, as comportas irão se abrir, e o
establishment educacional ser tornará irrelevante, e
eventualmente irá se extinguir. Espero que isso aconteça enquanto
eu estiver vivo. Por favor, ajude a fazer acontecer.
---------
[Recado
de Peter Gray]
Este
blog é, entre outras coisas, um fórum de discussão. Por favor,
compartilhe suas ideias e experiências que sejam relevantes para o
argumento do “não fazer o mal” aplicado à educação. Como
sempre, eu prefiro que vocês postem suas ideias e perguntas aqui,
na seção de comentários, do que enviá-los para mim via e-mail.
Postando-os aqui, vocês os compartilham com outros leitores, não só
comigo. Eu tento ler todos os comentários e responder todas as
perguntas sérias quando penso que tenho algo que vale a pena dizer.
Naturalmente, se você tiver algo para dizer que se aplica somente a
você e a mim, envie então um e-mail, mas não garanto a resposta,
pois frequentemente recebo mais e-mails do que consigo responder.
Além disso, tenha em mente que eu não sou um coach familiar,
e geralmente evito dar conselhos pessoais.
Veja
também meu livro Free
to Learn, alternativestoschool.com;
self-directed.org (para saber
mais sobre ASDE), e junte-se a mim no Facebook.
Referências
[1]
Csíkszentmihályi, M., & Hunter, J. (2003). Happiness in
everyday life: The uses of experience sampling.
Journal of Happiness Studies, 4,
185–199.
[2]
Irwin A. Hyman & Donna C. Perone (1998). The Other Side of
Student Violence: Educator Policies and Practices That May Contribute
to Student Misbehavior. Journal
of School Psychology, 36,
7-27.
[3]
Brengden, M., Wanner, B., &
Vitaro, F. (2006). Verbal abuse by the teacher and child adjustment
from kindergarten through grade 6. Pediatrics,
117, 1585-1598.
[4]
A. G. McEachern, O. Aluede & M. C. Kenny (2008). Emotional abuse
in the classroom: Implications and interventions for counselors.
Journal of Counseling and
Development 86, 3-10.
[5]
J. M. Branan (1972). Negative human interactions. Journal
of Counseling Psychology,
19, 81-82.
[6]
K. Olson. Wounded by
School. Teachers’
College Press, 2009.
[7]
Children’s hair cortisol as a biomarker of stress at school entry
Groeneveld et al (2013). Stress:
The International Journal on the Biology of Stress, 16,
711-715.
[8]
For a review of the evidence and references to the studies see: P.
Gray (2016). Mother nature’s pedagogy: How children educate
themselves, pp 49-62 in H.E. Lees & N. Noddings (Eds.), The
Palgrave international handbook of alternative education.