terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Sobre o caminhar da Humanização do Parto no SUS de Uberlândia.

     Quem me conhece sabe que tendo a ser otimista. Aprendi a ver, reconhecer e me focar nas coisas boas e isso faz toda a diferença na forma de ver o Mundo. E esse texto escrevo sob esse viés, com o intuito de compartilhar as coisas boas, as conquistas e alegrias que realmente aconteceram esse ano no SUS de Uberlândia em relação à Humanização do Parto e Nascimento.
     Não sou ingênua, não desconsidero o momento político e a crise que temos enfrentado em nosso país e, mais especificamente, na gestão pública do município. Mas, apesar disto, fico pensando que a gente merece sim divulgar e compartilhar as coisas especiais também.
     2016 foi um ano de muito investimento na Capacitação dos profissionais da Secretaria Municipal de Saúde em relação à humanização do parto.

     Realizamos um Grande Encontro Temático organizado intersetorialmente para discutir questões super atuais relacionadas ao cuidado com a primeira infância



     Organizamos, Secretaria de Saúde + Hospital Municipal, uma Semana de Assistência ao Parto e Nascimento para os profissionais desse hospital, a fim de discutir e propor adequações da assistência ao parto, especialmente no que diz respeito ao acolhimento dos bebês.


     E, o que para mim, foi a mais surpreendente e gratificante ação, elaboramos e concluímos a capacitação de duas turmas de profissionais da Atenção Básica num Curso de Formação para Facilitadores de Grupos de Gestantes. Foram 20 Unidades de Saúde selecionadas para essa primeira etapa do curso, com mais de 60 profissionais capacitados. Uma capacitação dividida em 6 encontros, embasada na metodologia de roda, super vivencial e afetiva, mas também com um conteúdo teórico riquíssimo. 
     Acreditar no potencial da Rede e dos profissionais e ter o retornos dos mesmos, a cada encontro, a cada reflexão, a cada depoimento, foi mágico. Tenho plena convicção que a transformação efetiva e eficaz da mudança de prática de um paradigma tecnocrático e hospitalocêntrico para um modelo humanizado e baseado em evidências científicas, se dá muito mais por meio do coração do que por decretos, protocolos ou leis (embora também necessários).
     A proposta é continuar esse formato de capacitação e ir ao longo do tempo capacitando toda a Rede... 




     E por fim, a apresentação desse trabalho desenvolvido como Apoiadora da Humanização do Parto e Nascimento ao longo desses últimos 3 anos na Mostra Internacional de Boas Práticas em Gestão e Cuidado na Atenção Perinatal na IV Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimento que aconteceu agora em novembro de 2016.


    E assim, encerro o ano, com a sensação de que vale a pena investir naquilo que acreditamos. Com fé de que a luta diária, quando regada por amor e solidariedade, vale a pena. 
     Continuemos, acreditando e fazendo a parte que nos cabe nesse emaranhado de Vida.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Os fundamentos biológicos da educação autodirigida

Os fundamentos biológicos da educação autodirigida

Os quatro impulsos inatos poderosos que levam as crianças a educarem a si mesmas


Tradução de Luís Gustavo Guadalupe Silveira
Em diversos posts anteriores eu afirmei que as crianças vêm ao mundo biologicamente projetadas para se educarem a si mesmas. A evidência vem da observação das incríveis capacidades de aprendizagem das crianças antes delas entrarem na escola (aqui), do modo como crianças e adolescentes em culturas de caçadores-coletores educam a si mesmas (aqui), do modo como as crianças se educam atualmente nas escolas democráticas (aqui e aqui) e nas famílias que praticam a desescolarização (aqui e aqui).

    Neste post eu quero ser um pouco mais preciso com relação à base biológica da educação autodirigida. Ela se sustenta, eu acredito, em quatro impulsos poderosos que existem em toda criança normal:  curiosidade, ludicidade, sociabilidade, e engenhosidade. Os fundamentos desses impulsos estão codificados em nosso DNA, moldados pela seleção natural ao longo de nossa história evolutiva, para servir à educação. Nossas escolas convencionais suprimem deliberadamente esses impulsos, especialmente os três primeiros, com o intuito de promover conformidade e de manter as crianças presas ao currículo da escola.  Diferentemente, a educação autodirigida – como acontece em famílias desescolarizadas e em escolas democráticas – opera permitindo o florescimento desses impulsos. Aqui irei falar um pouco sobre cada um desses impulsos e como eles interagem entre si para promover a educação:

Curiosidade

    Aristóteles começou seu grande tratado sobre a origem do conhecimento (a Metafísica) com estas palavras: “Os seres humanos são naturalmente curiosos.” Nada pode ser mais verdadeiro. Nós somos intensamente curiosos, do nascimento até, em muitos casos, a hora da nossa morte. Logo nas primeiras horas após o nascimento, os bebês começam a olhar por mais tempo para novos objetos do que para objetos que já viram. À medida que ganham mobilidade, primeiro com os braços e mãos e depois com as pernas, eles usam essa mobilidade para explorar domínios cada vez mais amplos em seus arredores. Eles querem entender os objetos em seu ambiente e querem, especialmente, saber o que podem fazer com esses objetos. É por isso que eles estão continuamente mexendo com as coisas, sempre explorando. É por isso que, uma vez tendo adquirido a linguagem, eles fazem tantas perguntas. Tal curiosidade não diminui à medida que as crianças crescem, a menos que a escola a destrua, mas continua a motivar maneiras cada vez mais sofisticadas de exploração e experimentação em áreas cada vez maiores do ambiente. As crianças são, por natureza, cientistas.

Ludicidade

    O impulso de brincar serve à educação de modo complementar àquele da curiosidade. Enquanto a curiosidade motiva as crianças a buscar conhecimento e compreensão, a ludicidade as motiva a praticar novas habilidades e usar essas habilidades de maneira criativa. Crianças de todos os lugares, quando são livres e têm companheiros suficientes, passam muito tempo brincando. Elas brincam para se divertir, não para se educar de propósito, mas a educação é o efeito colateral que explica a presença do forte impulso para brincar ao longo da evolução. Elas brincam com todo o leque de habilidades que são cruciais para sua sobrevivência e seu bem-estar a longo prazo.

• Elas brincam com o corpo, sobem em árvores, perseguem umas às outras, fazem lutinhas, e é assim que elas desenvolvem corpos fortes e movimentos graciosos.

Elas brincam com o perigo, e é assim que elas aprendem a lidar com o medo e desenvolvem a coragem (aqui).

Elas brincam com a linguagem, e é assim que elas aprendem a se comunicar bem.

Elas brincam socialmente, com outras crianças, e é assim que elas aprendem a negociar, ceder e a se dar bem com os companheiros (aqui).

Elas realizam brincadeiras com regras implícitas ou explícitas, e é assim que aprendem a obedecer regras.

Elas brincam de faz-de-conta, e é assim que elas aprendem a pensar de forma criativa e hipotética.

Elas brincam com a lógica, e é assim que elas se tornam intelectualmente consistentes.

Elas brincam com blocos de montar, e é assim que elas aprendem a construir.

Elas brincam com as ferramentas da sua cultura, e é assim que elas se tornam competentes no uso dessas ferramentas.

    A brincadeira não é um intervalo da educação; ela É educação. As crianças aprendem muito mais com as brincadeiras, e com muito mais alegria, do que poderiam aprender numa sala de aula. (Para saber mais sobre o que as crianças aprendem por meio de brincadeiras, veja aqui.)

Sociabilidade

    Nós humanos não somos apenas os mamíferos mais curiosos e brincalhões, mas também os mais sociais. Nossas crianças vêm ao mundo com uma compreensão instintiva de que sua sobrevivência e bem-estar dependem de sua habilidade de se conectar e aprender com outras pessoas. Todos os seres humanos, mas especialmente os mais jovens, querem saber o que as pessoas ao seu redor sabem e também compartilhar seus próprios pensamentos e conhecimentos com os outros. Antropólogos relatam que crianças de todos os lugares aprendem mais observando e ouvindo as pessoas ao seu redor do que de qualquer outra maneira.[1]

    Nossa adaptação mais específica para a vida social, que aumenta imensamente nossa habilidade de aprender uns com os outros, é a linguagem. Praticamente assim que aprendem a falar, as crianças começam a fazer perguntas. Elas não querem ouvir sobre assuntos que não lhes interessam, mas praticamente exigem que lhes falem sobre as coisas que interessam. A linguagem permite que nós compartilhemos todo tipo de informação uns com os outros. Ela nos permite falar uns para os outros não somente sobre o presente, mas também sobre o passado, o futuro e o hipotético. Como o filósofo Daniel Dennett escreveu num capítulo sobre linguagem e inteligência: “Comparar nossos cérebros com os de pássaros ou golfinhos não faz sentido, pois nossos cérebros estão com efeito conectados em um sistema cognitivo único que supera todos os outros. Eles estão reunidos por uma inovação que invadiu somente os nossos cérebros e nenhum outro: a linguagem.”[2] Hoje, graças à internet, esse sistema cognitivo está maior do que nunca. Os jovens com conexão à internet podem acessar todo um mundo de hipóteses, ideias e informações. Nunca foi tão fácil realizar uma educação autodirigida.

Engenhosidade

    Nós, muito mais que qualquer outra espécie, temos a capacidade de pensar no futuro. Na verdade, somos inclinados a fazer isso. Nós não reagimos apenas a situações imediatas; nós antecipamos situações futuras, fazemos planos e seguimos esses planos. Esse é o impulso educacional básico mais conscientemente cognitivo, e se desenvolve mais lentamente que os outros. À medida que as crianças crescem, elas se tornam cada vez mais capazes e motivadas a planejar mais e mais o futuro. Esse é o impulso que leva os aprendizes autodirigidos a pensar sobre seus objetivos de vida, grandes e pequenos, a buscar deliberadamente o conhecimento e a praticar as habilidades necessárias para realizar essas metas. Cientistas cognitivos se referem a essa capacidade de fazer e executar planos como “função executiva autodirigida”. Suas pesquisas mostraram que crianças que têm muito tempo livre para brincar e explorar por conta própria e com outras crianças, independentemente de adultos, desenvolvem mais plenamente essa capacidade do que crianças que passam mais tempo em atividades estruturada por adultos. [3] Isso não é surpresa nenhuma. Quando as crianças criam suas próprias atividades, sem controle adulto, elas continuamente praticam a habilidade de fazer e executar planos. Elas cometem erros, mas aprendem com esses erros.


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[Recado de Peter Gray]
O que você pensa sobre o assunto? Este blog é, entre outras coisas, um fórum de discussão. O que eu deixei passar aqui? Baseado em suas observações, quais parecem ser os impulsos inatos que motivam as crianças de maneira tão intensa a aprender sobre o mundo ao seu redor e desenvolver as habilidades necessárias para uma vida satisfatória e significativa? Como sempre, eu prefiro que vocês postem suas ideias e perguntas aqui, na seção de comentários, do que enviá-los para mim via e-mail. Postando-os aqui, vocês os compartilham com outros leitores, não só comigo. Eu tento ler todos os comentários e responder todas as perguntas sérias quando penso que tenho algo que vale a pena dizer. Naturalmente, se você tiver algo para dizer que se aplica somente a você e a mim, envie então um e-mail, mas não garanto a resposta, pois frequentemente recebo mais e-mails do que consigo responder.

Veja também meu livro Free to Learn, os sites alternativestoschool.com e self-directed.org (para saber mais sobre ASDE), e junte-se a mim no Facebook.

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Referências

[1] Lancy, D. F., Bock, J., & Gaskins, S. (2010). Putting learning into context. In D. F. Lancy, J. Bock, & S. Gaskins (Eds.), The anthropology of learning in childhood, 3–10. Lanham, MD: AltaMira Press.

[2] Dennett, D. C. (1994). Language and intelligence. In J. Khalfa (Ed.), What is intelligence? Cambridge: Cambridge University Press.

[3] Barker, J. et al (2014). Less-structured time in children’s lives predicts self-directed executive functioning. Frontiers in Psychology, 5, 1-16.

Crédito da imagem: Sudbury Valley School

domingo, 4 de dezembro de 2016

A Menina e a Mulher

Nos encontramos nessa Vida há 37 anos. Hoje, na maior parte do tempo, Ela é uma  velha conhecida. Mesmo assim, em alguns momentos, sinto como se tivesse acabado de conhecê-la. Essa minha antiga companheira. Quantas vidas, histórias e aventuras já vivemos juntas. Tantas que nem sei.

Marquei um encontro com Ela. No dia de seu aniversário. Sozinha! Era necessário intimidade, tempo, dedicação. Nosso momento de nos re-conhecer. Só nós!
Ando sentindo necessidade de olhar para ela. De buscar traços conhecidos. De admirar as novas marcas do tempo. De sentir seu coração, o ritmo pulsante, de ouvir as histórias do seu caminhar, sonhos realizados e os que ainda estão surgindo.

E assim, nesse encontro, que foi nesse dia, mas que também tem sido uma busca diária, pude mergulhar para dentro de mim mesma, "aterrissar" em meu próprio coração. E, nesse lugar tão íntimo, deixar a mulher madura e a menina feliz se enamorarem uma pela outra. Me encontrar com Ela, comigo mesma.

A minha menina vive num balanço. Doce, sorridente, sonhadora. A minha menina sempre quer agradar, sempre quer corresponder a todas as expectativas criadas para ela. A minha menina adora colo e atenção e luta eternamente com sua timidez. Ela é observadora, delicada e sempre espera a sua vez.

A minha mulher tem olhar de serpente. Ousada, insubordinada, questionadora. A minha mulher precisa dizer não para aquilo que a incomoda e não aceita intimidação. Ela gosta de desafios e enfrenta a vida de frente. Ela sabe lidar com seu poder, com sua sabedoria, com sua criatividade e não poupa esforços para construir seus próprios caminhos.

Nesse nosso encontro, ficamos, as duas, em uma longa e silenciosa conversa. Antigas companheiras, numa dança vital de sobrevivência.

Por um longo tempo, por um acordo estratégico, demos um pouco mais de espaço para a Menina. Aos 37 anos, não mais. A Mulher tem construído seu templo. E a re-adaptação é de ambas.
No fim, a certeza do re-encontro e da necessidade urgente de vários outros encontros, a sós, só nós!








segunda-feira, 21 de novembro de 2016

E se o primeiro princípio da educação fosse o mesmo da medicina?

E se o primeiro princípio da educação fosse o mesmo da medicina?
E se as escolas mantidas pelo Estado tivessem que provar que fazem mais bem do que mal?


Tradução de Luís Gustavo Guadalupe Silveira

Public domain image from Creative Commons
 Fonte: Imagem de domínio público do Creative Commons

Primum non nocere: em primeiro lugar, não causar dano. Os estudantes da maioria das faculdades de medicina, para se tornarem médicos, devem fazer um juramento, parcialmente inspirado no antigo juramento de Hipócrates, no qual declaram estar conscientes de que o primeiro princípio da prática médica é “não causar dano.” Claro, muitos tratamentos médico envolvem necessariamente algum dano; assim, o que esse princípio quer dizer na prática é que todo o dano potencial a um paciente deve ser comparado ao benefício estimado, e deve haver uma boa evidência de que o benefício será maior que o dano.

E se nosso sistema de escolarização compulsória tivesse que fornecer evidências, para cada criança, de que o benefício da escolarização é maior que o dano que ela causa? Aqui está a pequena Suzy, com 5 anos de idade. O Estado diz que ela precisa entrar no jardim de infância; nem ela nem seus pais podem fazer nada a respeito (a menos que seus pais tenham condição de educá-la em casa ou de bancar outras formas de satisfazer a exigência de educação compulsória do governo). E se, antes de matricular a pequena Suzy, o Estado tivesse que provar que a instituição na qual ela será forçada a entrar irá provavelmente trazer mais benefícios que malefícios?

Se o Estado tivesse que fazer isso – se tivesse que respeitar o juramento de “não causar dano” – a escolarização como conhecemos iria entrar em colapso. De repente, teria lugar a tão aguardada revolução educacional. Na realidade, mesmo se a exigência fosse somente provar que a escolarização beneficia a criança média, ou a maioria das crianças, mais do que a prejudica, o sistema iria ruir.

A escolarização compulsória é uma imensa invasão nas vidas das crianças e suas famílias, e seus danos estão bem documentados.

Às vezes, ouço dos defensores da escolarização forçada o que eu chamo de a justificativa “do remédio amargo.” A escolarização, eles dizem, pode não ser agradável, mas é necessária para o bem-estar das pessoas a longo prazo. Eles ignoram o fato de a maioria dos remédios ser tomada em questão de segundos, enquanto a escolarização compulsória leva 11 anos (ou 13 em alguns Estados). Eles ignoram que pessoas razoáveis podem escolher tomar um remédio ou não, ou administrar ou não medicamentos aos seus filhos pequenos, baseadas em sua própria análise das evidências sobre os possíveis benefícios do tratamento. Eles ignoram o fato de não haver nenhuma evidência de que a escolarização forçada obtenha melhores resultados do que outras formas de educar que têm um gosto melhor e placebos mais baratos. O placebo do qual estou falando é o unschooling, ou escolas livres e democráticas, nas quais as crianças são responsáveis por suas próprias vidas e por sua educação, e contam com a ajuda, e não a coerção, de adultos dedicados, quando assim desejam.

Se a escolarização fosse um medicamento, ela nunca seria aprovada pela FDA. Não há nenhuma evidência de que ela oferece mais benefícios do que os placebos que eu mencionei acima, e há muita evidência de que ela causa sério dano. Aqui estão algumas das evidências que já foram documentadas:

Um estudo em grande escala feito com estudantes de vários distritos escolares, usando um método experimental por amostragem, revelou que estudantes eram menos felizes na escola do que em qualquer outro lugar em que costumavam estar.[1]

Professores frequentemente cometem abusos verbais. Em outra pesquisa, por exemplo, 64% dos estudantes do ensino médio relataram sofrer de sintomas de estresse causados por abusos verbais de professores.[2] Outro estudo revelou que quase 30% dos meninos sofreram abuso verbal de seus professores no jardim de infância, e que o abuso aumentou nos anos seguintes.[3] Pesquisas em adultos indicaram que entre 50% e 60% dos investigados se lembram de experiências escolares que, em sua opinião, foram psicologicamente traumáticas.[4]

Em um estudo em que 150 estudantes universitários foram convidados a descrever as duas experiências mais negativas de suas vidas – experiências que afetaram negativamente o seu desenvolvimento – de longe os relatos mais comuns (28% do total) foram interações traumáticas com professores.[5] Em um estudo em que adultos foram entrevistados para descobrir sobre as melhores experiências positivas de aprendizado em suas vidas escolares, poucos foram capazes de relatar tais experiências, mas muitos se lembraram de experiências negativas, que atrapalharam mais que ajudaram seu desenvolvimento.[6]

Os níveis de cortisol no cabelo de crianças pequenas eram significativamente mais elevados nas amostras obtidas dois meses depois do início das aulas do que nas amostras extraídas dois meses antes de começar a escola.[7] O nível de cortisol indica estresse crônico, o tipo de estresse que pode prejudicar seriamente o crescimento e a saúde.

Uma pesquisa nacional de larga escala, conduzida pela American Psychological Association, (publicado aqui) revelou que os adolescentes dos EUA se sentem mais estressados do que os adultos e que a escola é de longe a principal causa de seu estresse (apontada por 83% dos entrevistados). No mesmo estudo, 27% dos adolescentes relataram experimentar “estresse extremo” durante o período escolar, contra 13% que relataram estresse durante as férias.

No âmbito da saúde mental, a taxa de visitas emergenciais que levaram a pelo menos uma noite de internação (o tipo de visita causada por surtos graves ou tentativas de suicídio) em um centro de saúde infantil se mostrou mais de duas vezes maior durante os meses letivos em comparação aos meses de férias (aqui).

A isso, acrescente a imensa quantidade de tempo das crianças e dos adolescentes que é desperdiçada dentro do sistema escolar. Se você não acredita, peça permissão ao diretor de uma escola para ser a “sombra” de um estudante por um dia – quer dizer, para passar um dia inteiro na escola fazendo tudo que se exige de um estudante. Todos os adultos que fizeram isso – incluindo vários professores – ficaram chocados com o tédio e as horas perdidas, durante ais quais não eram livres para se dedicar a nada de sua escolha. Nenhum deles quis repetir a dose por mais um dia. Acredite, crianças e adolescentes não são mais tolerantes ao tédio do que adultos; eles simplesmente não têm escolha.

Educação não-invasiva como alternativa à escolarização forçada

Sempre que possível, médicos esclarecidos e conscienciosos procuram por métodos não-invasivos ou minimamente invasivos para resolver problemas médicos em lugar de métodos altamente invasivos, tais como cirurgias ou medicamentos tóxicos, que prejudicam a integridade do corpo e podem causar dor, invalidez ou mesmo morte. A escolarização forçada é uma prática educacional extraordinariamente invasiva. A alternativa não-invasiva é a educação autodirigida, como no unschooling ou em escolas democráticas e livres. Pesquisas realizadas até o momento sugerem que esses modos de educação são pelo menos tão efetivos quanto a escolarização forçada na preparação dos jovens para a vida adulta e que perturbam bem menos a vida cotidiana das crianças e suas famílias [8].

Mas o establishment educacional não quer saber dessas evidências. Aqueles que lucram com a instrução forçada e invasiva são como cirurgiões que lucram com cirurgias e não querem saber se há maneiras mais baratas e menos invasivas de resolver o problema médico específico que eles estão tratando. Em duas ocasiões, eu concorri, junto a outros colegas, por bolsas de pesquisa em grandes fundações que permitiriam fazer um estudo bem elaborado e sistemático sobre os efeitos de longo e curto prazos da escolarização padrão (tanto pública quanto privada) em comparação à educação autodirigida. Em ambos os casos, o projeto foi rejeitado sem nenhuma explicação e sem estímulo para novas tentativas. Eu não gosto de soar arrogante, mas sou pesquisador há um bom tempo e já revisei muitos pedidos de bolsa. Eu sei que o estudo proposto por nós, em ambos os casos, destacava-se pelo planejamento e por apresentar questões que são muito mais importantes para o bem-estar e o futuro das crianças e de nosso país do que a maioria (senão a totalidade) das outras pesquisas financiadas por aquelas fundações. Para mim, isso representa uma inegável evidência de que o establishment educacional simplesmente não quer que ninguém faça a grande pergunta: o nosso sistema educacional atual, compulsório e hierarquizado, é mesmo mais eficiente no desenvolvimento de adultos competentes, produtivos, bem empregados e felizes do que uma educação autodirigida e não-invasiva?

Imagine o que aconteceria se uma dessas fundações realmente financiasse um estudo bem planejado e os resultados mostrassem, de uma maneira difícil de contradizer, que o procedimento não-invasivo funciona tão bem ou mesmo melhor que o invasivo. Como alguém poderia então justificar o gigante educacional que sustenta tantas carreiras e enriquece tantas empresas? Já não haveria mais a necessidade de departamentos de educação nas universidades. A necessidade de professores seria grandemente reduzida – até um pequeno número que seria procurado por aprendizes autodirigidos em razão de suas habilidades e conhecimentos, não em função de suas “credenciais de professor.” Haveria pouca necessidade de livros didáticos; e, sem seus consumidores forçados, os preços desses livros iria cair e sua qualidade, aumentar.

A revolução educacional virá, mas não de dentro do establishment educacional. Virá pois cada vez mais pessoas estão usando todos os meios legais disponíveis para tirar seus filhos desse sistema invasivo. Enquanto isso acontece, com a passagem do tempo, um número cada vez maior de pessoas irá conhecer gente que cresceu fora da escolarização forçada e verá que a educação não-invasiva funciona. Em algum momento, as comportas irão se abrir, e o establishment educacional ser tornará irrelevante, e eventualmente irá se extinguir. Espero que isso aconteça enquanto eu estiver vivo. Por favor, ajude a fazer acontecer.

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[Recado de Peter Gray]
Este blog é, entre outras coisas, um fórum de discussão. Por favor, compartilhe suas ideias e experiências que sejam relevantes para o argumento do “não fazer o mal” aplicado à educação. Como sempre, eu prefiro que vocês postem suas ideias e perguntas aqui, na seção de comentários, do que enviá-los para mim via e-mail. Postando-os aqui, vocês os compartilham com outros leitores, não só comigo. Eu tento ler todos os comentários e responder todas as perguntas sérias quando penso que tenho algo que vale a pena dizer. Naturalmente, se você tiver algo para dizer que se aplica somente a você e a mim, envie então um e-mail, mas não garanto a resposta, pois frequentemente recebo mais e-mails do que consigo responder. Além disso, tenha em mente que eu não sou um coach familiar, e geralmente evito dar conselhos pessoais.

Veja também meu livro Free to Learn, alternativestoschool.com; self-directed.org (para saber mais sobre ASDE), e junte-se a mim no Facebook.

Referências

[1] Csíkszentmihályi, M., & Hunter, J. (2003). Happiness in everyday life: The uses of experience sampling. Journal of Happiness Studies, 4, 185–199.

[2] Irwin A. Hyman & Donna C. Perone (1998). The Other Side of Student Violence: Educator Policies and Practices That May Contribute to Student Misbehavior. Journal of School Psychology, 36, 7-27.

[3] Brengden, M., Wanner, B., & Vitaro, F. (2006). Verbal abuse by the teacher and child adjustment from kindergarten through grade 6. Pediatrics, 117, 1585-1598.

[4] A. G. McEachern, O. Aluede & M. C. Kenny (2008). Emotional abuse in the classroom: Implications and interventions for counselors. Journal of Counseling and Development 86, 3-10.

[5] J. M. Branan (1972). Negative human interactions. Journal of Counseling Psychology, 19, 81-82.

[6] K. Olson. Wounded by School. Teachers’ College Press, 2009.

[7] Children’s hair cortisol as a biomarker of stress at school entry Groeneveld et al (2013). Stress: The International Journal on the Biology of Stress, 16, 711-715.

[8] For a review of the evidence and references to the studies see: P. Gray (2016). Mother nature’s pedagogy: How children educate themselves, pp 49-62 in H.E. Lees & N. Noddings (Eds.), The Palgrave international handbook of alternative education.

sábado, 15 de outubro de 2016

Eu, a Educação Pública e o SUS que conheço e defendo

Eu sou uma pessoa privilegiada
Eu sou filha do SUS
Minha mãe batalha pelo SUS desde que me conheço por gente
Minha mãe trabalha no SUS, só no SUS
Minha mãe é médica
Eu cresci nessa luta, nesse engajamento, dentro das estruturas de saúde do SUS
Eu levava minha mãe, eu a buscava, e às vezes, eu passava a tarde inteira dentro de um "postinho de saúde", brincando na recepção, brincando na máquina de datilografar da secretaria, correndo ao redor da "casa" com meus irmãos

Eu sou uma pessoa privilegiada
Eu sou filha da educação pública
Meu pai é professor em uma universidade pública desde que me conheço por gente
Ativo na associação de docentes, participante dos movimentos, das greves, das reivindicações
Eu cresci nessa luta, nesse engajamento, dentro das estruturas da Educação Pública e Gratuita
Eu ia para as reuniões, para as festas de articulações, para as manifestações
E sempre estudei em escola pública
Ensino básico, fundamental, médio, universitário, especialização, mestrado...
Tudo público e gratuito
Me envolvendo nos movimentos sociais e mecanismos democráticos de gestão

Eu sou uma pessoa privilegiada
Eu sempre trabalhei no SUS
Desde que me formei
Unidade Básica de Saúde, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, CAPS da Infância e da Adolescência, Programa de Assistência Domiciliar, Humanização do Parto e Nascimento
E eu me apaixonei ainda mais
Pelo Humano, pelo Povo, pela Vida

Eu sou uma pessoa privilegiada
Trabalho no SUS com o que eu amo
Humanização do Parto e Nascimento
E tenho suporte, embasamento e referências para atuar
E vejo as coisas acontecendo
Devagar...
Em minha cidade, o melhor hospital para parir é do SUS

Nos últimos anos, aprendi e escolhi olhar só para a Potência
As brechas, as Possibilidades, as Flores...
Quantas flores vi desabrochar, em mim, nos Outros
Quantas conquistas, quantos avanços
E o SUS assim, me envolvendo, naturalmente

Hoje, senti dentro de mim um aperto, uma dor
Pessoal e Profissional
Hoje, fui atingida pela História, pelo momento de retrocessos que vivemos
Minha criança sentiu medo de perder aquilo que viu crescer junto de si
A Luta de minha mãe
A Luta de meu pai
A minha própria Luta

É que aprendi que não posso ignorar meus privilégios
Não posso defender meus direitos e não olhar para o lado
Não posso achar que tenho o que mereço só por mérito próprio
Minha cor, minha família, meu acesso aos meios me deram tais privilégios
Meus dons, minha capacidade, meus diplomas
Devo isso ao SUS e à Educação Pública

Minha compaixão, meu profissionalismo, minha capacidade de estar ao lado de outro ser humano
Isso eu aprendi compartilhando a dor da Ana Lúcia, do Filipe, da Luane, do Lucas, do Ivan, da Mariana, do Claures, do Rafael, da Suellen, do Leandro, da Dona Luci... todos usuários do SUS
Cada um me ensinou muito mais do que recebeu

Ah! A Dona Luci...
Dona Luci me recebeu tantas vezes em sua casa, com seu lixão no quintal e um sorriso largo no rosto
Sempre me oferecendo um pouco de sua escassa comida
Gentilmente parando seus afazeres de cuidados com suas filhas, acamadas, para me dar um pouco de atenção
Eu, no meu mundo de privilégios
Ela, pacientemente, em suas dores, com os lixos que nós produzimos

Eu sou filha do SUS
E ainda acredito em um mundo e em um governo
Que consigam se humanizar frente ao sofrimento de qualquer ser humano
Seja ele meu, seu ou das Donas Lucis
E que compreendam que não é reduzindo, restringindo, destruindo o acesso a direitos básicos e de sobrevivência que vamos melhorar um país

Eu sou uma pessoa privilegiada
Cheia de privilégios
O maior deles: ter conhecido as entranhas do SUS
Seus princípios, sua luta pela universalidade, equidade e integralidade
Eu, continuo engajada à minha história
Continuemos a acreditar...




quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Forças contrárias a mudanças reais na educação

Forças contrárias a mudanças reais na educação 
Porque a reforma educacional deve ocorrer fora do sistema de ensino
 


Peter Gray
Professor Pesquisador do Departamento de Psicologia da Universidade de Boston
Autor do livro
Free to Learn, disponível para compra aqui.
 

Tradução de Luís Gustavo Guadalupe Silveira

Em postagens anteriores, eu apresentei evidências que corroboram as seguintes afirmações: (1) Os instintos infantis de brincar e explorar por conta própria forneceram a base para a educação durante nossa longa história como caçadores-coletores.
[1] (2) As crianças hoje podem educar a si mesmas, e realmente o fazem, muito bem, sem coerção, direcionamento ou estímulo de adultos, caso lhes seja oferecido um ambiente que apoie seus instintos de brincar e explorar.[2] (3) As escolas convencionais são o que são hoje por causa de circunstâncias históricas que levaram as pessoas a desvalorizar a brincadeira, a acreditar que a força de vontade das crianças deve ser dobrada, e a acreditar que tudo que é útil, inclusive a aprendizagem, requer trabalho duro.[3]

Hoje, muitas pessoas compreendem o valor educacional da brincadeira e da exploração livres, lamentam que as crianças tenham relativamente pouca oportunidade para realizar tais atividades, e acreditam que a força de vontade das crianças contribui positivamente para seu desenvolvimento, sua educação e sua satisfação com a vida. Todavia, as escolas continuam a ser como antes. Realmente, a escolarização convencional e outras atividades direcionadas por adultos que seguem esse padrão de escolarização ocupam uma parcela cada vez maior do tempo das crianças. Por que é tão difícil assim reverter essa tendência? Por que é tão difícil assim realizar mudanças fundamentais dentro do sistema de ensino? Eu não sei qual é a resposta final a essas perguntas, mas apresento aqui um esboço de meus pensamentos a respeito das forças que dificultam tanto a realização das mudanças fundamentais no sistema de ensino.

A Normalidade da Escolarização Convencional

Como os psicólogos sociais frequentemente apontam, as pessoas fazem de tudo para parecerem normais. Se nos comportarmos diferente da norma, os outros podem nos rejeitar e não há nada pior para nós, seres sociais, do que a rejeição. Se em determinada cultura, todas as pessoas enfaixam os pés das meninas, apertando-os, então mesmo os pais que não acreditam nessa prática fazem o mesmo, para que suas filhas não pareçam estranhas. Se todas as crianças da vizinhança vão a uma escola convencional, então a criança que faz algo completamente diferente disso pode ser vista como estranha, e os pais podem ser vistos não só como estranhos, mas como negligentes.


Para ter uma pequena amostra de quanto nós identificamos as crianças com sua escolarização convencional, ouçam a qualquer conversa (ou tentativa de conversa) entre um adulto e uma criança que o adulto tenha acabado de conhecer: “Em qual série você está na escola?” “Qual é a sua matéria preferida?” “Você gosta da sua professora?” “Você está ansioso pelo começo das aulas?” Temos que descobrir um jeito completamente novo de conversar com crianças que não vão a escolas assim.
 

As escolas novas que se baseiam em princípios muito diferentes daqueles de escolas convencionais atraem relativamente poucos estudantes, mesmo entre aqueles que acreditam nos princípios, por causa do medo de fazer algo que pareça anormal. Crianças que decidem frequentar essas novas escolas precisam de muito apoio para combater esse medo, e seus pais precisam ainda mais de suporte.

As Profecias Autorrealizadoras da Escolarização Convencional 

A escolarização convencional promoveu maneiras de pensar e de agir que transformam suas próprias premissas em profecias autorrealizadoras. As premissas parecem ser verdadeiras porque as avaliamos dentro do contexto da escolarização convencional e pelos critérios estabelecidos por essa escolarização.
 

Aqui vai um exemplo dessas premissas: As escolas precisam motivar as crianças a aprender. Eu encontrei, inúmeras vezes, pais que acreditam que escolas nãoconvencionais tais como a Sudbury Valley são ótimas para “crianças automotivadas” mas não para os seus filhos, pois eles “não são automotivados”. E as próprias crianças frequentemente acreditam nisso. Elas dizem coisas como “Eu preciso de um professor que fique em cima, ou eu não vou fazer nada o dia todo”. Por que as pessoas em nossa cultura têm essa visão de que as crianças em idade escolar não irão aprender muita coisa se deixadas por conta própria? Quase ninguém pensa isso a respeito de crianças que ainda não estão em idade escolar,[4] e os caçadores-coletores não acham isso de nenhuma criança.[5] 

Uma das razões para se pensar que crianças em idade escolar não são motivadas para aprender por conta própria vem da aceitação geral em nossa cultura da definição de aprendizagem dada pelo sistema de ensino. Ao definir aprendizagem como a realização de exercícios ou tarefas que se parecem muito com exercícios escolares, então certamente é verdade que crianças “desescolarizadas” ou que frequentam escolas Sudbury passam pouco tempo “aprendendo”. Em vez disso, elas passam seu tempo brincando e explorando, de forma imprevisível, e adquirem conhecimentos e habilidades de sua cultura como efeito colateral.

Outra razão para essa percepção é que crianças que passam seu dia em escolas convencionais, fazendo provas ou tarefas que não querem fazer, podem, ao final do dia, passar seu tempo livre relaxando, descansando, extravasando, do mesmo jeito que seus pais fazem depois de um dia estressante no trabalho. Isso diminui as chances de as crianças se engajarem completamente naquele tipo de brincadeira, exploração e conversação que nós identificamos mais facilmente como atividades educativas.
 

Outro exemplo de profecia autorrealizadora na escola é este: O bom desempenho escolar é um indicador de sucesso futuro. Fazemos essa profecia se tornar realidade ao criar um mundo para as crianças em que definimos “sucesso” como bom desempenho escolar. O trabalho das crianças é tirar boas notas na escola, e há muitas recompensas para quem faz isso. Boas notas são o critério para avançar ao próximo nível no sistema escolar seriado, para o lugar que se ocupa na “lista dos melhores alunos”, para se tornar elegível para jogar em um time, para entrar na universidade, para nomeações em sociedades concorridas, para receber aprovação dos adultos etc. Assim, claro, de acordo com todas essas medidas de sucesso, o bom desempenho escolar (como o que é medido pelas notas) prevê o sucesso futuro. Além disso, nós somos bombardeados todos os dias com estatísticas que mostram a correlação entre anos de escolaridade e o sucesso na carreira que pode ser medido pela renda. Entretanto, há muitas razões para a existência dessas correlações que nada têm a ver com aprendizagem. Aqui estão três dessas razões:

(1) Criamos um mundo no qual certos empregos bem pagos, tais como advocacia, medicina e administração de empresas, normalmente requerem alguns anos de educação superior. Nesse mundo, anos de escola inevitavelmente correspondem à renda.
(2) Criamos um mundo no qual o “sucesso” é mais ou menos definido como tirar boas notas na juventude e ganhar muito dinheiro mais tarde. Nesse mundo, as pessoas que são altamente motivadas por conquistas, nos termos convencionais, irão trabalhar por notas altas na escola e por dinheiro na vida adulta; e,
voilà, eis a correlação. Nós também criamos um mundo em que pouquíssimas pessoas não frequentam escolas convencionais, assim pais e crianças têm acesso a poucos exemplos de outras trajetórias de sucesso.
(3) Crianças de lares ricos podem arcar com mais despesas educacionais do que aquelas de lares mais pobres, assim obtêm mais educação escolar. As crianças de lares ricos também têm mais oportunidades de conseguir empregos mais bem pagos, em função de contatos familiares e muitas outras vantagens, do que crianças de lares pobres. Isso também ajuda a criar a correlação entre anos de escolaridade e renda futura.


Por essas e outras razões, é inevitável encontrar correlações entre escolaridade e “sucesso” no mundo que construímos. Não é possível determinar estatisticamente se uma dessas correlações tem alguma coisa a ver com o que se aprende na escola. 


O Entrincheiramento da Indústria Educacional 

Outro motivo da inércia que impede mudanças reais em nosso sistema educacional tem a ver com a natureza massiva e entrincheirada do negócio educacional. Nos Estados Unidos, 6,8 milhões de pessoas atualmente ganham a vida como professores, de acordo com o Departamento Norte-Americano de Recenseamento. Contrariando a opinião geral, o magistério paga melhor que a média dos empregos administrativos ou de escritório[6] e oferece muitos outros benefícios, incluindo geralmente estabilidade, excelentes planos de aposentadoria e longas férias. Escolas de magistério, que preparam professores para escolas convencionais, abrangem uma grande parte das instituições de educação superior. A indústria dos livros didáticos também é grande e lucrativa. Uma mudança radical em nosso sistema educacional iria perturbar tudo isso. Tal mudança iria abolir nossa necessidade por professores, como os definimos hoje. Iria abolir também nossa necessidade por escolas de magistério e por livros didáticos, senão completamente, ao menos em grande medida.

Muitas pessoas em nossa cultura possuem interesse econômico não somente em preservar, mas também em expandir a educação convencional. Quanto mais horas e anos de escola exigimos dos jovens, mais professores, administradores escolares, professores de licenciatura, autores e editores de livros didáticos nós empregaremos. O negócio da educação é igual a qualquer outro: está constantemente em busca de expansão em prol daqueles que lucram com ele.


A indústria educacional prospera com pequenas mudanças e novidades. Novas ideias sobre como motivar as crianças, novos cursos e novas formas de ensinar velhos cursos (tais como “a nova, nova, nova matemática”) fornecem empregos para professores de licenciatura e editores de livros didáticos. Mas as mudanças fundamentais do tipo que eu venho apresentando em postagens anteriores neste blog iriam perturbar isso tudo. 

Mudanças Graduais Não Funcionam

Outra barreira para o tipo de mudança na escola sobre a qual tenho falado é que ela não pode ser feita gradualmente dentro da escola ou do sistema educacional. A mudança requer uma troca de paradigma, de um no qual professores estão no comando do processo educacional para outro no qual cada estudante está verdadeiramente no controle de sua própria educação. Não dá para fazer isso um pouquinho de cada vez.

Enquanto professores estabelecerem um currículo, não importa quantas escolhas ofereçam dentro desse currículo, os estudantes verão como tarefa do professor, e não de si mesmos, decidir o que aprender. Enquanto professores avaliarem o desenvolvimento dos estudantes, não importa como seja feita essa avaliação, os estudantes considerarão
que sua tarefa é corresponder às expectativas dos professores, não estabelecer e alcançar suas próprias expectativas.


Na realidade, o acréscimo de escolhas e de meios menos claros de avaliação dentro do sistema convencional de educação pode fazer com que as vidas dos estudantes fiquem ainda mais estressantes do que antes. Depois de tais mudanças “liberais”, fica a cargo de cada estudante adivinhar o que é que o professor quer que ele faça e adivinhar o verdadeiro, e não dito, critério de avaliação. A escola se transforma em um exercício de leitura da mente. Minha visão é que dentro do sistema convencional de educação a melhor forma de ensinar é sendo o mais claro possível a respeito das exigências e critérios, assim os estudantes podem corresponder a isso com o mínimo de receio de que estejam estudando as coisas erradas.
 

Você também não pode, dentro do sistema convencional de educação, esperar eliminar a avaliação gradualmente, uma matéria de cada vez. Suponhamos que você introduza dentro do currículo uma matéria em que os estudantes não recebam notas. Você verá que a maioria dos estudantes não irá fazer nada nessa disciplina, mesmo se quisesse. Num sistema em que as outras matérias valem nota, a que não vale é vista como irrelevante. Como um bom estudante pode justificar se dedicar a uma matéria que não vale nota se outras valem? Para mudar essa mentalidade, todo o sistema precisa mudar. 

Como a Mudança está Acontecendo

Todavia, a mudança fundamental na escola está ocorrendo fora do sistema escolar tradicional. Está acontecendo entre grupos de famílias que decidem “desescolarizar” suas crianças (ou seja, ensinando-as em casa de uma maneira livre, sem currículo ou avaliação) e entre pessoas que abrem escolas não-escolares, tais como as que seguem o exemplo da Sudbury Valley School. As pessoas nesses movimentos estabelecem entre si novos conjuntos de normas sociais, que as permitem superar as barreiras que se erguem diante das maneiras que soam anormais para outras pessoas. Ao testemunharem as crianças que estão se educando a si mesmas, essas pessoas passam a ver a educação sob uma nova luz, como algo para admirar e desfrutar nas crianças, mas não para controlar. Começam a ver muitos exemplos de pessoas que se educaram de maneira livre e feliz, fora do sistema escolar convencional, e seguiram em vidas bem-sucedidas, de acordo com todas as definições significativas de sucesso, e assim as profecias autorrealizadoras da escolarização convencional são finalmente compreendidas.

Não temos motivos para nos sentirmos desanimados com o futuro da educação. Só precisamos perceber que a verdadeira reforma não irá acontecer dentro do sistema escolar estabelecido. Ela continuará acontecendo fora desse sistema. A mudança gradual que irá acontecer é que cada vez mais gente irá deixar as escolas convencionais. Para permitir que isso aconteça, temos que garantir que as pessoas tenham o direito legal de escolher não fazer parte desse sistema. Em um nível político, isso deveria ser a maior
prioridade daqueles que buscam um mundo no qual crianças possam se desenvolver de maneira livre e feliz, experimentando completamente a democracia, com os direitos e as
responsabilidades que ela traz.


NOTAS DO TRADUTOR

1 - “Children Educate Themselves III: The Wisdom of Hunter-Gatherers”, disponível em:https://www.psychologytoday.com/blog/freedom-learn/200808/children-educate-themselves-iii-thewisdom-hunter-gatherers.
2 - “Children Educate Themselves IV: Lessons from Sudbury Valley”, disponível em:
https://www.psychologytoday.com/blog/freedom-learn/200808/children-educate-themselves-ivlessons-sudbury-valley.
3 - “A Brief History of Education”, disponível em:
https://www.psychologytoday.com/blog/freedomlearn/200808/brief-history-education

4 - “Children Educate Themselves II: We All Know That’s True for Little Kids”, disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/freedom-learn/200807/children-educate-themselves-ii-weall-know-s-true-little-kids.
5 - Ver nota 1.

6 - Para mais informações, acessar http://www.manhattan-institute.org/html/how-much-are-publicschool-teachers-paid-5831.html.