Aos quatro ventos, nossas experiências, ideias, reflexões e vivências sobre nascimento, educação, criação...
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Casa da Árvore
Hoje, nasce mais um filhote, de uma longa história...
Quem acompanha nosso blog ou nossa caminhada real sabe que educação é um tema que nos perpassa e sabe também que temos experimentado e buscado cada vez mais ser coerentes com aquilo que acreditamos. Tarefa não muito fácil. Mas a cada passo em sua direção, mais possível.
Hoje, compartilhamos o nascimento de um site. E com ele, abrimos, também, mais possibilidade de diálogo.
Enfim, apresento aos interessados, a nossa Casa da Árvore!!!
Sejam bem-vindos!
http://www.comunidadecasadaarvore.org/
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
Sobre partos e bruxarias: ainda o Caso Madrecor
Era uma
vez...
Ano de 1587,
condado de Dilligen, na Baviera (hoje, Alemanha)
Nome:
Walpurga
Profissão:
parteira (por 19 anos)
Processo:
condenada pela Igreja Cristã por praticar bruxarias e fazer sacrifícios com
bebês
Desfecho:
Sua casa foi invadida, seu "livro de feitiços" confiscado, ela sofreu torturas e
teve sua mão direita decepada (com a qual fez o juramento de parteira) antes de
ser queimada viva na fogueira.
Era ontem...
Ano de 2014,
cidade de Uberlândia, Brasil
Nome: Simone,
Luciana e Patrícia (nomes fictícios por questão de preservação da imagem das
minhas amigas, rs....)
Profissão:
médicas obstetras
Processo: condenadas
por um Hospital por praticarem atos ilícitos e inseguros dentro do seu
estabelecimento
Desfecho:
Proibição da assistência humanizada ao parto dentro do Hospital, ameaça de
descredenciamento das mesmas do seu quadro de profissionais por descumprirem as
normas da Instituição, alegação verbal, em audiência na Promotoria, de que as
médicas não são bem-vindas e que ninguém as quer ali nem o tipo de assistência
que elas praticam dentro do Hospital deles... “Nós somos uma empresa privada,
que visa lucro e temos o direito de fazer o que a gente quiser... por que vocês
não procuram a turma de vocês e nos deixam em paz? Por que a insistência em
oferecer isso no nosso hospital? Isso não diz respeito a nós, não somos SUS e
não precisamos seguir nenhuma regulamentação do Ministério da Saúde” (etc e
tal...).
Parece
ficção científica, poderia ser um filme de terror, mas em ambos os casos, os
relatos são parte do registro histórico e refletem a visão que criamos
culturalmente frente ao universo do nascimento.
Nossa atual
compreensão do fenômeno do parto e nascimento reflete exatamente a influência do
pensamento cristão na época de Walpurga: a imagem da mulher como ser puro e
assexuado, o corpo como algo sujo e mundano e que precisa ser negado, a
soberania machista e controladora. Para impor o pensamento cristão, era necessário passar o
controle sobre o nascimento aos homens (parceria da Igreja com a Medicina) e
desacreditar a sabedoria das mulheres (parteiras), sobrepor a razão ao instinto
e à emoção. Era ainda preciso fragilizar o corpo das mulheres, incapacitá-las e purificar o nascimento desassociando-o dos órgãos sexuais. Como fazer isso? Com
ameaças, com medo e terrorismo, com violência e com controle social: quem
fugisse à regra seria condenado e executado... Muitas foram as mulheres
queimadas...
Ontem, aconteceu
uma Audiência no Ministério Público Estadual, em Uberlândia, sobre o caso da proibição no tal Hospital Hospital
e Maternidade (leia o Termo da Audiência aqui). Um encontro entre Mulheres
(inclui aqui também profissionais e homens que apoiam a causa, éramos 7 mulheres
e 1 homem) e os representantes do Hospital (4 homens e 1 mulher) para
tentar chegar a um acordo sobre a necessidade do mesmo aceitar as
gestantes que desejarem ter uma assistência humanizada ao parto.
O Hospital,
mais uma vez, se mostrou insensível ao assunto, irredutível à possibilidade
do diálogo. Isso ficou claro pela postura do advogado do Hospital, que gritou
durante 3 horas e fez questão de frisar que “não estava nos ofendendo até
porque nem sequer estava dirigindo o seu olhar para nós.” Sim, ele falava de
nós, nos interrompia, nos chamava de mentirosas mas NÃO NOS OLHAVA, como se não
fôssemos dignas de ser consideradas na conversa. Aliás, ele também questionou
várias vezes o porquê de haver outros profissionais ali, do nosso lado, que não
eram associados ao Hospital. Até tentou expulsar da sala o pediatra que nos
apoiava e desmentia as alegações incabíveis deles, alegando que ele não tinha
nada a ver com o caso. Nesse momento, o Promotor foi bem sensato, "abaixando a
bola" do gritador, reforçando que o pediatra era muito bem-vindo e dando espaço
e destaque para a sua fala.
Em suma, o
Hospital pintou um quadro horroroso do que eles imaginam ser o parto
humanizado: falas distorcidas, assustadoras e irreais (de “comedoras de
placentas” que se esfregam em todas as paredes do Hospital e que depois se
trancam no quarto cheio de fezes com o bebê roxo, com uma médica que recusa ajuda
da enfermagem e do pediatra e que ficam tirando fotos enquanto o bebê sofre...).

“(...) a
bruxa ganhou uma poção de unguento (...). Com essa poção, Walpurga dizia ter
assassinado mais de 40 recém-nascidos, todos de famílias cristãs. Quando não
morriam intoxicados, eram asfixiados ou tinham seus crânios esmagados (...).
Ela também realizava missas negras e rituais do mal (...).” (Revista Mundo Estranho, outubro de 2014).
Eu, mulher,
profissional e defensora da humanização do parto e nascimento, senti na pele a
dor de Walpurga e tantas outras “bruxas” condenadas durante a Inquisição. Elas
não se adequaram ao novo perfil de mulher, elas não se submeteram ao poder,
elas não se calaram... Ontem, a cultura ainda dominante, da hegemonia do paradigma
do parto tecnocrático, hospitalocêntrico e medicalocêntrico, se mostrou presente
na Audiência, personificada nos representantes do Hospital. Gritos,
deboches, falsas alegações, atravessamento de nossas falas... é assim o jogo
deles. E, por mais que a gente não se interesse por esse jogo, sentimos suas
consequências. Todas nós saímos de lá com a sensação de termos sido agredidas,
sentimos na alma um pouco do que lutamos diariamente para combater: a violência
obstétrica.
Quando um Hospital
mostra seu desconhecimento sobre o que é a assistência humanizada ao parto,
quando ele diz que é uma empresa privada e que sua preocupação é o lucro e não as diretrizes e regulamentações do Ministério da Saúde, quando ele pede que
fique bem claro e registrado na Ata da Audiência que é definitivamente contra a
assistência humanizada ao parto e que irá continuar realizando apenas “partos
desumanizados”, ele está praticando um ato de violência contra todas as
mulheres e o direito de serem respeitadas em suas escolhas.
Não foi fácil
testemunhar e participar desse momento. Três horas intermináveis, difíceis, mas não desperdiçadas. Apesar do cansaço, sinto que continuamos avançando, ganhando nosso
espaço e nos fazendo visíveis frente ao Sistema. De tudo, agradeço ao Promotor,
que se mostrou disposto a nos ouvir, que também segue regras e precisa acatar o
que a Vigilância Sanitária (órgão técnico responsável pela vistoria) diz sobre o assunto, e que tentou a todo momento priorizar o interesse imediato dos bebês e gestantes que
estão para nascer, lhes assegurando o direito ao parto humanizado. Quanto às
demais gestantes e o futuro da assistência humanizada em Uberlândia, ele
garantiu que o processo não estava encerrado e que está investindo esforços
para compreender mais sobre o assunto e estender a questão a todos os hospitais
da cidade. Assim esperamos.
E sobre os
próximos passos...
Ontem mesmo
acrescentamos mais documentos ao caso, estendendo nosso pedido para a regulamentação
do parto humanizado a todos os hospitais da cidade. Documentos obtidos com o apoio
imprescindível da de uma associação nacional (Artemis) que visa a atuar como aceleradora social da
igualdade de gênero, realizando projetos que promovam a autonomia feminina e a
erradicação de todas as formas de violência contra a mulher (ver no final deste texto o Requerimento completo dessa associação encaminhado para todos os Órgãos Federais e Municipais cabíveis quanto às devidas providências frente à proibição do parto humanizado em Uberlândia).
Solicito
gentilmente a toda a mídia e pessoas que se interessem em divulgar o assunto,
que leiam atentamente esses documentos antes de publicarem suas matérias com as
justificativas oficiais do Hospital quanto à proibição do parto
humanizado... Lembrando que Assistência Humanizada ao Parto não é uma modalidade de parto!
Atendimento Humanizado ao Parto é POLÍTICA NACIONAL DE COMBATE À MORTALIDADE
MATERNA E NEONATAL!
E, para o
advogado do Hospital, gostaria de destacar que gritos e sarcasmo podem fazer parte do seu
teatro para inibir os “adversários” e marcar sua presença, mas, para mim, parece
mesmo é mostrar uma insegurança danada, um medo de se expor e de se permitir
sentir... de ser humano. Sinto muito que você precise disso para sobreviver e
que tenha que afiar suas garras para lutar pelo “seu paciente”. Às vezes,
precisamos reconhecer os limites, aceitar que nem todas as intervenções para
manter um paciente vivo se justificam... que algumas só pioram o quadro e
perpetuam o sofrimento... Como psicóloga que trabalhou vários anos com cuidados
paliativos, aprendi na pele que, em alguns momentos, aceitar nossas
fragilidades, reconhecer nossos limites, nos permitir viver o momento e abrir o
coração para enfrentar de forma lúcida a proximidade do fim é bem mais honroso,
ameno e sereno do que ficar lutando, esbravejando e nos desconectando do
essencial. Se o "seu Hospital", enquanto instituição privada que se propõe a prestar
um atendimento à saúde, está na "UTI em estado grave", não seria a hora de abrir
seu coração, de rever sua trajetória e valorizar a parte bonita de sua história
(inclusive com o tanto de parto humanizado que já realizou)???* Se o Senhor Advogado conseguisse me escutar por pelo menos meio minuto, eu lhe diria: lute, mas lute pelo que
vale a pena ser vivido!
Minha eterna gratidão ao grupo de profissionais e mulheres de Uberlândia que estão dando um exemplo de cidadania, sabedoria e união, sentimentos e ações tão sintonizados com a causa que estamos defendendo... E ainda minha reverência a Walpurga e a todas as outras parteiras queimadas vivas naquela época e na atual...
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